9 pequenas considerações sobre certa homofobia

1. Todo homofóbico não é um homossexual enrustido. Senão, para apreender a dimensão do exagero, imaginemos, lembrando-nos de que a homofobia surgiu no Ocidente, no século 19, concomitantemente e relacionada à formação de sociedades heteronormativas: todos – repito: todos! – os homofóbicos, de todas as sociedades, do passado e do presente, mas do futuro também, todos, sem nenhuma exceção, são homossexuais enrustidos. 

2. A crença de que todo homofóbico é um homossexual enrustido não é universalista como aparenta ser, na prática significando, efetivamente: todo homem – todo indivíduo do gênero masculino – homofóbico é um homossexual enrustido. A suspeita e a acusação de enrustimento muito raramente recaem sobre mulheres homofóbicas. (Afirmo que muito raramente, para não incorrer no equívoco de generalização total que denunciei no item 1, concedendo que, provavelmente, a suspeita e a acusação também possam ser dirigidas contra mulheres. Todavia, pessoalmente, não consigo me lembrar de nenhuma situação.)

3. A crença opera da seguinte maneira: quando um homem ofende, discrimina ou pratica violência contra homens cisgêneros gays ou bissexuais, travestis ou mulheres transexuais, torna-se suspeito de ser um homossexual enrustido. A crença não funciona muito bem quando a vítima é uma mulher lésbica ou bissexual cisgênera, porque, nesta situação, o homem enrustido não estaria tentando suprimir seu suposto verdadeiro objeto de desejo.

4. Se todo homem homofóbico é um homossexual enrustido, todos os homens homofóbicos são homens homossexuais que ignoram a verdade do próprio desejo ou, não a ignorando, simulam desesperadamente ser homens heterossexuais.

5. De acordo com a crença, conclui-se que nenhum homem heterossexual é homofóbico, porque todo homem homofóbico é, necessariamente, um homossexual enrustido.

6. De acordo com a crença, conclui-se que todo homem homossexual – na medida em que se supõe que a sexualidade é constituída exclusivamente pelo genótipo, estando determinada previamente aos processos de socialização: um homossexual nasce homossexual – é um homofóbico em potencial.

7. De acordo com a crença, toda homofobia praticada por homens é praticada somente por homens homossexuais (enrustidos). Homens heterossexuais não praticam homofobia.

8. A crença reduz a homofobia praticada por homens de um complexo problema social, relacionado a diversos fatores, a um mero problema de ordem psíquica, um distúrbio da sexualidade individual, estabelecendo uma relação de causa (enrustimento) e efeito (homofobia). Conclui-se que, se todos os homens homofóbicos fizerem terapia, tornar-se-ão bem resolvidos e felizes homens gays ou bissexuais, travestis ou transexuais, desaparecendo a homofobia para sempre.

9. A suspeita e a acusação de enrustimento são lançadas contra homens porque a identidade masculina (heterossexual), o polo dominante nas relações de poder entre os gêneros, é mais frágil do que a feminina. A suspeita ou a acusação de homossexualidade é vivenciada por quem a sofre como uma negação de sua masculinidade, posto que sendo a heterossexualidade a orientação do desejo que a cultura institui como natural, o desejo homoerótico é concebido como uma inversão do gênero de quem o experiencia. Acusar um homem homofóbico de ser um homossexual enrustido consiste em uma forma de atacá-lo precisamente no loco onde reside sua honra: sua identidade masculina (heterossexual). Para quem desfere o ataque, a acusação pode proporcionar não apenas o prazer da ofensa e da provocação – faz-se alguém se sentir ofendido pela sugestão ou afirmação de que seja homossexual –, mas também a satisfação de quem, independentemente da orientação sexual, situando-se em uma posição de superioridade, sabe e controla a verdade a respeito de si mesmo, sua sexualidade, em contraposição àquele de quem se tem a certeza de que ignora ou se esforça desesperadamente para suprimir sua própria verdade.

4 comentários em “9 pequenas considerações sobre certa homofobia

  1. Ponderação excelente. Só deixo um questionamento. Alguns homofóbicos realmente são gays enrustidos. A virulência no combate evidencia justamente uma dificuldade em lidar com o próprio desejo. Para ele, não é concebível que o desejo dele vá contra o que a cabeça dele (e a sociedade) acham “corretos”.

    Abs
    Nisz

    1. Charles,

      muito obrigado!

      penso que as pessoas homofóbicas e transfóbicas experimentam ansiedade e angústia em relação ao corpo e ao desejo do outro. o corpo e o desejo do outro lhes provocam mal-estar, porque evidenciam que há múltiplas formas pelas quais um indivíduo pode ser e estar no mundo, múltiplas formas pelas quais pode se relacionar consigo mesmo e com os outros. O corpo do outro, a enunciação do outro, os gestos e as ações do outro provocam mal-estar, porque desrespeitam as normas sociais e desestabilizam as certezas do eu sobre si mesmo, deslocando-o das posições onde estava seguro. A ansiedade e a angústia experimentadas em relação ao corpo e ao desejo do outro estão, com efeito, relacionadas à ansiedade e à angústia que o eu experimenta em relação ao próprio corpo e ao próprio desejo, cujos mistérios ele receia. O desejo temido é um desejo de ser outro, um desejo de ser e estar no mundo de outra forma, que pode, muitas vezes, ser um desejo homoerótico, mas não necessariamente.

      Comparativamente, note o mal-estar que tantas pessoas manifestam em relação a homens e mulheres negros que deliberadamente se recusam a se conformar aos padrões estéticos dominantes, assumindo uma identidade negra. Muitas pessoas se incomodam, por exemplo, com o simples fato de um homem ou uma mulher negros manterem o cabelo crespo e longo ou usarem turbantes, um incômodo análogo àquele provocado pelo homem gay feminino, pejorativamente chamado de efeminado. Os enunciados e os atos racistas, não raro virulentos, dessas pessoas manifestam uma ansiedade e uma angústia em relação ao corpo e ao desejo do outro negro que não se conforma às normas sociais, mas não significam que elas, secretamente, desejem se tornar homens ou mulheres negros, que desejem ser negros.

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