O diálogo impossível com o conservadorismo antidemocrático

Um fato reteve minha atenção durante a sessão da Comissão de Direitos Humanos – CDH do Senado em que foi discutido o PLC n. 122/06, o qual terminou não sendo votado, porque a relatora, a senadora Marta Suplicy (PT-SP), o retirou para reexame: a presença de uma criança, um menino de idade entre 8 e 10 anos, que ora aplaudia entusiasticamente as falas contrárias à criminalização da homofobia, ora vaiava as falas favoráveis. Às vezes, ele erguia um cartaz, o qual era, sem dúvida, o mais idiota dentre todos os confeccionados pelos cristãos fundamentalistas que lotavam o plenário: “Você só existe porque essa lei não existia”. Aparentemente, não sabia o criador da frase que os senadores estavam reunidos para discutir a criminalização da homofobia, não um absurdo e inconstitucional projeto que instituísse a homossexualidade compulsória e proibisse a reprodução humana no Brasil. Um dos problemas que inviabilizam o debate com os setores conservadores é certamente o reduzido nível intelectual do conservadorismo brasileiro. Ignoram e distorcem os fatos; insistem em repetir incansavelmente argumentos ilógicos há muito refutados; não respondem perguntas; não tentam, porque não conseguem, contestar os argumentos contrários – quando não usam e abusam do cinismo.

O garoto homofóbico provavelmente se tornará um homem homofóbico. Quando praticar a homofobia na vida adulta, não faltará alguém que, em ao menos uma ocasião, o acusará de ser um homossexual enrustido, esquecendo ou ignorando que, no mesmo processo em que foi compelido a se tornar heterossexual, ele aprendeu também a odiar todas as formas de manifestação de gênero e de sexualidade contrárias à heterossexualidade normativa. Recentemente, um amigo me contou que cresceu em uma pequena cidade próxima a uma aldeia de índios Kaingang, onde as crianças não índias aprendiam muito cedo a ofender umas às outras xingando-se de “seu índio”. O ódio ao outro é uma educação.

Terminou ontem a 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT, promovida pela Secretaria de Direitos Humanos. Em 2008, o presidente Lula discursou na abertura da 1ª Conferência. Em 2011, a presidenta Dilma Rousseff não compareceu ao evento, encarregando três ministros da função de representá-la, ato simbólico da desimportância da questão queer na agenda do atual governo. Ironicamente, o homem nascido em Caetés, que por muitos anos viveu em ambientes intensamente sexistas e homofóbicos – a cidadezinha do interior de Pernambuco, a fábrica metalúrgica, o sindicato – e que fez declarações públicas homofóbicas, foi capaz de refletir sobre suas representações e seus valores, de se autocriticar, de se recriar. Jamais esperei que Dilma enviasse ao Congresso Nacional um projeto de lei propondo a instituição do casamento igualitário. Contudo, nunca imaginei o retrocesso que está ocorrendo nos direitos e nas políticas públicas da população gay, lésbica, bissexual, travesti e transexual, neste governo. Ou melhor, lançando um olhar para fora do gueto, nunca poderia imaginar o retrocesso em curso nos direitos humanos. É sintomático da política de direitos humanos do governo Dilma que a presidenta não tenha participado de nenhuma das conferências nacionais realizadas este ano, exceto da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Os direitos socioambientais, os direitos dos povos indígenas, os direitos das comunidades tradicionais certamente são os que estão sendo sistematicamente violados, quando não por omissão do Estado, pela ação do próprio Estado, em um governo em que prevalece uma ideologia desenvolvimentista, para a qual tudo o que se apresenta como um entrave para a consecução do objetivo redentor, o desenvolvimento, que em nenhum momento é objeto de uma reflexão crítica, é considerado uma evidência do atraso que necessita ser superado a qualquer custo.

Do Executivo ao Legislativo a situação não é melhor. Tramitam no Congresso oito projetos que visam a proibir o reconhecimento legal das uniões homoafetivas, propugnando que seja tornada sem efeito a decisão do Supremo Tribunal Federal que equiparou a união estável entre pessoas do mesmo gênero à entidade familiar. No começo do ano, a senadora Marta Suplicy (PT-SP) desarquivou o PLC n. 122/06. No intuito de tentar assegurar a aprovação, efetuou alterações que comprometeram não apenas a letra, mas o espírito do texto. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) criticou as concessões de Marta às bancadas católica e evangélica, cujos senadores, entretanto, permaneceram irredutíveis: “O que vocês achariam de um parlamentar afro-americano que negociasse uma lei antirracismo não com o movimento negro, mas com a Ku Klux Klan?”.* Houve quem considerasse a comparação exagerada e injusta. A comparação, que não desmerece a trajetória passada de Marta em defesa das pessoas glbt’s, me parece procedente: como a Ku Klux Klan, que se opunha e continua se opondo a todos os direitos da população negra dos Estados Unidos, os cristãos fundamentalistas brasileiros não aceitam a concessão de nenhum direito à população glbt, como evidencia o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), integrante da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados: “A gente respeita, mas o único problema é que não concordamos com o reconhecimento [da união entre pessoas do mesmo gênero] como família. A sociedade não concorda e não aceita. É uma minoria querendo impor à maioria a opção deles. Por exemplo, a gente não concorda que uma criança seja criada por um casal homossexual. Isso é substituir a família”. Acerca da criminalização da homofobia, ele assevera: “Não há necessidade de fazer projeto. A pena é a mesma se você agride um homossexual ou um heterossexual. Você agrediu um ser humano. O Congresso representa a sociedade, se temos número e nos articulamos, é porque a maioria do país não concorda”.

Não olvidemos que as palavras do deputado são polidas se comparadas às de congressistas como Jair Bolsonaro (PP-RJ), João Campos (PSDB-GO) e Magno Malta (PR-ES). Se está convencido de sua posição, Cunha deveria propor imediatamente um projeto de lei que revogasse na íntegra a Lei n. 7.716/89, que pune “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Se não há necessidade de se criminalizar a homofobia, tampouco é necessário que se mantenha a criminalização do preconceito e da discriminação religiosos, bem como do racismo e da xenofobia.

Na sessão da CDH que discutiu o PLC n. 122/06, a ex-senadora Marinor Brito (PSOL-PA), ecoando as palavras de Jean Wyllys e criticando a postura de Marta, sustentou que não há possibilidade de mediação com quem, como o deputado Magno Malta, afirma que não existe homofobia no Brasil. Com efeito, não somente não há como não é nem necessária nem almejável. Toda tentativa de convergência de interesses com quem nega a existência da homofobia, bem como do sexismo e do racismo, na sociedade brasileira é torpe, vil. Significa uma tentativa de obtenção de um consenso (inexequível) com homofóbicos, mas também com defensores da ditadura militar, corruptos e corruptores, promotores do obscurantismo e exploradores da fé, opositores dos direitos femininos, dos direitos reprodutivos e do aborto, das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Não obstante, a gravidade do problema – do qual a questão queer, assegurada sua especificidade, se configura como um exemplo – é maior. Estamos vivenciado nos últimos anos no Brasil um recrudescimento dos ataques à democracia, que os setores conservadores se esforçam para que se degenere em uma ditadura da maioria, e aos direitos humanos, o qual ultrapassa o terreno das práticas cotidianas, onde convivemos com os antigos desrespeitos costumeiros – nas ruas e avenidas de São Paulo onde glbt’s são espancados; nos campos e nos territórios indígenas do Mato Grosso do Sul; na floresta Amazônica; nas cidades que sediarão os grandes eventos esportivos de 2014 e 2016, onde milhares de famílias estão sendo expulsas de seus lares e recebendo, quando recebem, indenizações miseráveis –, avançando sobre o terreno da legislação. Naquela sessão da CDH, ouvi os cristãos fundamentalistas entoarem em coro, contra o PLC n. 122/06: “A Constituição não é maior do que a Bíblia”.

O projeto conservador, que não apresenta somente um fundamento religioso, envolve tanto a denegação como a diminuição da proteção legal a diversos grupos sociais, como os povos indígenas. Não há possibilidade de discussão, a qual, como argumentei, não é nem sequer um horizonte ao qual se deva aspirar, porque os conservadores se utilizam instrumentalmente da democracia para combater fundamentos (a dignidade da pessoa humana), objetivos (a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação) e direitos individuais e coletivos da República Federativa do Brasil, constituída como Estado Democrático de Direito. O que está em causa não são apenas os direitos de tal ou qual grupo minoritário – glbt’s, mulheres, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais –, mas a própria democracia e os direitos humanos, a laicidade e a pluralidade, a justiça social.

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* Na discussão que opôs a senadora e o deputado, podem ser feitas críticas a Jean Wyllys também. Se ela, movida por nobres intenções, se equivoca, parece se alhear da realidade e estabelece acordos espúrios, ele, ao reagir à acusação de que se conduzia com má-fé, se arrogou um papel para o qual não foi eleito, como demonstra este tweet, datado de 8 de dezembro: “É difícil para a senadora compreender que se ela é uma aliada histórica, eu sou um homossexual que conhece no corpo o peso da homofobia”. À parte o fato de que heterossexuais também são vítimas de homofobia, como quando assumem uma posição política em defesa dos direitos da população glbt, é difícil para Wyllys compreender que a circunstância de ser homossexual não lhe confere nenhuma posição privilegiada para discutir a homofobia, dentro ou fora do Congresso. Importa tão-somente seus argumentos, não sua orientação sexual. Ele pode se apropriar de sua experiência pessoal para pensar a homofobia, um problema social, mas de nada valerá a possível força de sua experiência se seu pensamento for fraco. Ele não possui uma autoridade enunciativa superior a de nenhum homem ou mulher heterossexual. Marta não é aliada de ninguém. Não existem aliados da questão queer. Existem defensores dos direitos glbt’s, que podem ser gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e, também, heterossexuais – simplesmente porque não existem aliados dos direitos humanos, mas apenas defensores ou opositores. A defesa dos direitos glbt’s é uma defesa dos direitos humanos.

(Este escrevinhamento foi publicado originalmente, sob o mesmo título, no Amálgama, em 19 de dezembro de 2011.)

Toda pessoa tem direito à integridade física – mesmo uma criança

Por que uma pessoa ou um casal decide ter filhos? Ou, reformulando a pergunta: por que alguém decide se reproduzir?

No Ocidente, casar ou viver maritalmente e ter filhos são considerados hoje opções e não obrigações, muito embora a maioria das pessoas solteiras sintam constrangimento pela vida celibatária, a solidão persistindo como um signo de fracasso social, e julguem que precisam se casar ou encontrar um companheiro ou uma companheira, do contrário jamais experienciarão uma vida plena. A paternidade e a maternidade também deixaram de ser consideradas obrigações. Todavia, são opções e, concomitantemente, fatos naturais. Raramente alguém se faz as seguintes perguntas: por que eu quero ser pai? por que eu quero ser mãe? por eu desejo ter um filho? A vontade de ter filhos dispensa uma justificação racional, o desejo sendo justificado pelo próprio desejo. Prevalece não os interesses do filho a ser concebido ou em gestação – ou que se pretende adotar –, mas os do(s) adulto(s). Sendo a paternidade e a maternidade compreendidos como fatos naturais, homens e mulheres adultos não costumam se perguntar: tenho eu condições emocionais de ser um (bom) pai ou uma (boa) mãe? o que tenho eu a oferecer a uma criança?

O direito que assiste a um pai e a uma mãe de castigar fisicamente os filhos se assenta em um duplo fundamento. Primeiro. A criança é um outro em uma relação de dominação. Como a mulher, o negro, o índio, o homossexual, a criança se caracteriza por possuir um défice, que justifica que seja mantida dominada. Segundo. A criança é uma posse. Na maioria das famílias brasileiras, o pai e a mãe podem dispor livremente dos corpos infantis dos quais são possuidores. A criança não se constitui como sujeito, é constituída como um objeto. Consequentemente, não é detentora de direitos. Se o é, seu direito à integridade física pode ser excepcionado em situações em que o direito de um adulto não poderia sê-lo, ou seja, em situações que não se configuram como de legítima defesa.

Se se considera a criança não um objeto, um pertence, mas um indivíduo cuja alteridade deve ser reconhecida e respeitada, um sujeito portanto, não resta possibilidade de que os direitos do pai e da mãe possam se sobrepor aos direitos dos filhos. Torna-se irrelevante discutir se, em determinadas circunstâncias, uma palmada é ou não necessária, se uma palmada é ou não traumática. A criança é um sujeito e a integridade física do outro, salvo em legítima defesa, deve ser respeitada, incondicionalmente.

Aos pais que invocam o direito de bater nos filhos uma sugestão: experimentem o sadomasoquismo. Provavelmente encontrarão um adulto que gosta de se fantasiar de criança e de apanhar, em quem poderão bater consensualmente.

A memória imobilizada

4ª Blogagem Coletiva Desarquivando o Brasil –
pela Revisão da Lei da Anistia

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… um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo.

Roberto Bolaño, Amuleto.

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A contrapartida da crença de que é ingenuidade ou estupidez acreditar que seja possível transformar o mundo, de que tentar transformar o mundo seria um esforço vão, é a crença de que os acontecimentos traumáticos devem ser esquecidos. Ambas as crenças operam como instrumentos de colonização do tempo. A primeira se expande em direção ao futuro, negando todo devir possível. A segunda se expande em direção ao passado, negando toda possibilidade de uma narrativa alternativa em relação à hegemônica. A primeira crença visa a impedir a atividade de imaginação, a segunda, a instaurar o esquecimento. Condenam-nos à cegueira, à ignorância e ao silêncio.

Uma das características fundamentais da sociedade brasileira é a tendência à conciliação dos conflitos, à reconciliação, cuja necessidade de preservação confere legitimidade tanto à crença na importância do esquecimento, como à crença na inexorabilidade do futuro idêntico ao presente. Devemos esquecer para evitar conflitos, não devemos imaginar para evitar conflitos. O tempo é um rio de curso retilíneo, de águas cristalinas e rasas, que fluem suavemente.

Não é surpreendente, pois, que entre as finalidades da recentemente criada Comissão Nacional da Verdade esteja, juntamente com a efetivação do “direito à memória e à verdade histórica”, a promoção dareconciliação nacional”. Contudo, a contradição entre esse fato e minha argumentação é tão-somente aparente. A condição necessária para a existência da Comissão é justamente a garantia de que não poderá promover conflitos. Supondo um cenário de todo promissor e, portanto, improvável, em que a Comissão da Verdade consiga, a despeito do reduzido número de membros, da enorme quantidade de documentos a ser analisados, e do curto período de duração de suas atividades, “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988, supondo também que dentro de dois anos todos os documentos secretos do regime militar estejam disponíveis ao acesso do público, o que ocorreria? Com certeza, nossa compreensão acerca do período seria ampliada. Evidentemente, o conhecimento possui um valor imanente, que não é um valor reduzido mesmo se não possui aplicabilidade. Não obstante, a memória não pode tolerar lembranças do horror que reivindicam uma justiça que jamais é cumprida. O Estado brasileiro comente um duplo atentado à memória. Primeiro, institui, pela força da lei, o esquecimento. Posteriormente, permite o conhecimento, limitado – mas limitado não porque toda memória e toda narrativa histórica sejam lacunares, limitado por restrições estatais –, com o asseguramento da condição de que não possa ser utilizado a serviço da justiça. Da memória mutilada à memória imobilizada. Todavia, como a memória não se satisfaz apenas com o conhecimento do horror que não deve ser esquecido, exige – e continuará exigindo – que se realize a justiça também. A sociedade brasileira não precisa se reconciliar, precisa conhecer o passado e se entregar, sem receios, ao conflito.

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