Os brasileiros aprendemos, muito cedo, a não confiar na polícia e a temer a polícia. Aprendemos, muito cedo, as formas pelas quais devemos nos comportar corretamente em presença de um policial. “Polícia”, “policial”: significantes que enunciamos cotidianamente significando, na maioria das vezes, não o conjunto dos órgãos policiais do Estado e todos os agentes policiais, mas com os significados de “polícia militar” e “policial militar”. Evidentemente, as polícias militares estaduais e do Distrito Federal, bem como as polícias civis e federais, possuem seus inimigos principais: o negro, o pobre, o miserável, sobretudo: o negro pobre ou miserável, elementos perigosos por natureza, cuja mera existência constitui uma ameaça à ordem que deve ser preservada.
A ordem: os órgãos policiais militares, que são “forças auxiliares e reserva do Exército” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 144, § 6º), não existem para salvaguardar os indivíduos, a sociedade, mas para garantir a preservação desta entidade abstrata, a ordem instituída pelo Estado e pelo capital, ou, na letra do texto constitucional, para realizar “a polícia ostensiva” e para preservar a “ordem pública” (Constituição, art. 144, § 5º).
Não obstante a polícia possua seus inimigos principais, que sofrem regularmente e mais intensamente a arbitrariedade e a violência policiais, o sentimento de não-confiança e de temor, o conhecimento das normas de comportamento não-escritas, tácitas, que o indivíduo deve obedecer quando em presença de um policial são um sentimento e um conhecimento compartilhados por toda a população. As representações, os valores e os hábitos da polícia são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade. Esse é o motivo pelo qual, todos nós, em maior ou menor grau, não confiamos na polícia, tememos a polícia e nos esforçamos para nos comportar corretamente em presença de um policial. Sabemos que a polícia não existe para nos salvaguardar, que, por qualquer motivo e a qualquer momento, todos podemos, ainda que alguns certamente com mais facilidade do que outros, ser considerados inimigos. Os terríveis acontecimentos que vem ocorrendo nas últimas semanas em diversas capitais – especialmente os que ocorreram ontem em São Paulo, quando a polícia atacou com extrema violência os manifestantes que participavam da passeata pela redução do preço da tarifa do transporte público, mas também jornalistas e muitos transeuntes que não participavam da manifestação – apresentam ao menos uma virtude: lembrar-nos de qual é a finalidade que fundamenta a existência da polícia militar e, consequentemente, nos recordar de que, para uma instituição em estado de guerra permanente, todos que não integram suas fileiras, os outros, são possíveis ameaças, possíveis inimigos que devem ser combatidos.
Por quanto tempo nós brasileiros continuaremos a achar que é normal sentirmos medo da polícia?
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