Não estamos todos perplexos com a morte de Cláudia Silva Ferreira – mulher, negra, pobre, casada, mãe de quatro filhos, moradora do Morro da Congonha, em Madureira, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Hospital Naval Marcílio Dias e era responsável pela criação de quatro sobrinhos.
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Para a mídia corporativa, Cláudia Silva Ferreira não é uma mulher que foi assassinada, barbaramente assassinada, por policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, mas a mulher arrastada por policiais militares. Nos últimos dias, a retórica eufemística do jornalismo brasileiro, deliberadamente orientada a evitar todo estímulo à indignação coletiva contra a injusta ordem pública de cuja preservação a polícia militar é uma das principais responsáveis, atingiu o paroxismo. O significante ‘arrastado’ foi empregado não apenas como um adjetivo, mas também como um substantivo, como, por exemplo, em três manchetes do portal de notícias G1, das Organizações Globo: “Moradores fecham via após enterro de arrastada por carro da PM no Rio”, “‘Meu pai não vai conseguir cuidar de todos’, diz filho de arrastada por PMs”, “Arrastada por carro da PM do Rio foi morta por tiro, diz atestado de óbito”.
Muito provavelmente, o assassinato de Cláudia Silva Ferreira não teria sido noticiado ou teria sido noticiado sem destaques, como uma das muitas mortes que, todos os dias, ocorrem em confrontos com policiais militares nas cidades brasileiras, caso ela não tivesse sido arrastada por uma viatura policial. Seria reportado, se fosse, exclusivamente como um efeito colateral ou um excesso policial ou um erro. Uma baixa inocente e lamentável, mas inevitável, na guerra necessária contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Todos sabemos, a guerra é a única forma possível de se enfrentar o crime organizado e o tráfico de drogas. Não que a morte de Cláudia não esteja sendo noticiada dessa maneira, como um não-homicídio. Está. Afinal, na maioria das reportagens, ela não é a mulher assassinada ou, ao menos, a mulher morta por policiais militares, mas “A mulher arrastada” ou, tão-somente, “A arrastada”. O vídeo de Cláudia Silva Ferreira sendo arrastada por cerca de 350 metros, ao ser transportada a um hospital na caçamba de uma viatura da PMERJ, atraiu a atenção da mídia corporativa, convertendo seu assassinato em notícia, mas possibilitou também, convenientemente, que a comoção coletiva pudesse ser desviada do fato de ela ter sido assassinada para o fato de ter sido arrastada por policiais militares. Decerto, o arratamento de um indivíduo, em si, corporifica um ato bárbaro, consistindo em um fato demasiado grave. O problema é que Cláudia Silva Ferreira não foi apenas arrastada por policiais militares, mas também assassinada por policiais militares. Contudo, a mídia corporativa e o poder público têm silenciado o segundo fato.
Em face de atos de violência policial como o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, os arautos do bom senso exortam-nos a sermos cautelosos, alertando-nos para o perigo de não separarmos o joio do trigo, para o risco de jogarmos fora a criança com a água do banho: há bons policiais, não podemos esquecer.
A polícia militar brasileira é uma instituição que exige de seus membros a incorporação total de seu imaginário, de sua moralidade e de seu código de conduta. Os soldados devem incorporar as representações, os valores e os hábitos da instituição, sem jamais duvidar de sua necessidade e justeza, sem nunca questioná-los, mesmo se não estiverem inscritos em nenhuma lei do ordenamento jurídico. Os pontos situados fora da curva não são, para utilizar o vocabulário pessoalista que reduz problemas sociais a desvios de caráter, os maus policiais, mas os bons policiais. A estrutura da polícia militar está estruturada para produzir a figura do policial agressivo e que sistematicamente desrespeita os direitos. A polícia militar não é uma instituição que apresenta problemas, mas constitui, por si mesma, devido a sua estrutura, um problema social. Os três policiais militares que assassinaram Claudia Silva Ferreira, dois subtenentes e um sargento, estão envolvidos em sessenta e dois autos de resistência ou resistências seguidas de mortes, sendo responsáveis por sessenta e nove mortes. Somente um dos subtenentes está envolvido em cinquenta e sete autos de resistência, tendo assassinado sessenta e três pessoas!
A violência policial, que na sociedade brasileira adquiriu a dimensão de um hábito, passando a ser naturalizada e tacitamente justificada, motivo pelo qual não nos surpreende e não nos indigna, dirige-se, antes de tudo, contra os corpos que nossa cultura significa como passíveis de ser violentados: corpos índios, corpos negros, corpos pobres ou miseráveis, corpos femininos cisgêneros, corpos transgêneros, corpos não-heterossexuais. Não obstante, não são esses os únicos corpos que podem ser violentados pela polícia militar. Repete-se que, nas áreas nobres das cidades, os policiais militares não agem da mesma forma pela qual se conduzem nas favelas e nas periferias. Todavia, há dois equívocos nessa verdade autoevidente. (1) Aos corpos classificados pela cultura como passíveis de ser violentados está sempre sancionado dispensar uma atuação violenta, não importa o local onde estejam posicionados. (2) Embora a cultura opere uma clivagem entre corpos violentáveis e corpos não-violentáveis, a qual é reconhecida e seguida pela polícia militar, esta opera uma segunda clivagem, entre indivíduos ameaçadores à ordem e indivíduos não-ameaçadores. Em uma situação de conflito entre as duas clivagens, prevalece a segunda. Os corpos classificados como violentáveis compreendem justamente os indivíduos representados como ameaças naturais à ordem. Contudo, um indivíduo cujo corpo em princípio seja não-violentável pode tornar-se, ou melhor, pode terminar revelando-se um indivíduo ameaçador à ordem. Todo indivíduo que constitua uma ameaça à ordem pode ter seu corpo violentado, ainda que seu corpo não fosse classificado, anteriormente, como um corpo violentável.
Quem define quem são os indivíduos ameaçadores à ordem? A própria polícia militar. Essa foi a lição que parcela da população brasileira, branca e de classe média, aprendeu durante as revoltas de junho de 2013. Reitero o que escrevinhei à época. “As representações, os valores e os hábitos da polícia [militar] são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade”, na medida em que todo indivíduo pode terminar revelando-se uma ameaça à ordem, sendo reduzido a um corpo violentável. No decurso das revoltas do ano passado no Rio de Janeiro, um hospital público e uma organização não-governamental de assistência a crianças e adolescentes carentes soropositivos foram considerados locais que abrigavam indivíduos ameaçadores à ordem, sendo atacados com bombas de gás lacrimogêneo.
Lamentavelmente, talvez somente consigamos extinguir a polícia militar se e quando a parcela da população cujos corpos são, em princípio, não-violentáveis tornar-se, da perspectiva dos policiais militares, uma ameaça à ordem e objeto sistemático da violência institucionalizada.
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“A vítima de hoje foi uma mulher negra e pobre, moradora de uma favela situada em um bairro de classe média baixa do Rio de Janeiro. Cláudia, 38 anos, trabalhadora, mãe de quatro filhos, criava quatro sobrinhos. Mais uma vítima da ação bárbara da PMERJ. A voz das ruas diz que “a polícia mata pobre todo dia”. Quantos outros casos como o dela não ganharam voz na grande mídia? E qual voz o caso Cláudia ganhará? Sua morte é mais um exemplo de que a desmilitarização da polícia é uma questão urgente. Não queremos mais exemplos. Queremos o fim da Polícia Militar.”
http://pt.globalvoicesonline.org/2014/03/24/claudia-ferreira-da-silva-morta-em-acao-policial-tornada-invisivel-pela-midia/