“Mad Max – estrada da fúria” ou A possibilidade de um mundo outro, fundado no feminino

Mad Max – estrada da fúria, de George Miller, representa um futuro distópico em um tempo próximo mas impreciso, tão ou mais terrífico do que nos filmes anteriores da série. Os personagens habitam um mundo conflagrado por uma catástrofe ecológica, quase completamente estéril e com pouquíssima água potável. Um mundo que corresponde, ecologicamente, àqueles dos piores cenários que se nos apresentam em decorrência do aquecimento global e das mudanças climáticas.

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Mad Max 1

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Na economia da narrativa, a personagem interpretada por Charlize Theron (Imperatriz Furiosa) possui mais falas e aparece mais tempo nos planos do que o personagem de Tom Hardy (Max Rockatansky). Esse não é o xis da questão, contudo. Furiosa é uma personagem mais importante do que Max porque é ela quem inicia a ação, rebelando-se contra um regime totalitário, ao fingir partir em mais uma busca de suprimentos sob as ordens de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), ditador de um povoado denominado Cidadela, uma cidade-estado. Max é conduzido à ação por acaso, ou melhor, ele literalmente é jogado no meio da ação iniciada por Furiosa. Viajante solitário, Max fora sequestrado e se tornara um prisioneiro da Cidadela. Ele tentara fugir, mas foi recapturado. Como portador do tipo sanguíneo O negativo (doador universal), foi reduzido à condição de uma preciosa bolsa de sangue para os Garotos de Guerra, os soldados do exército da cidade-estado. Quando Immortan Joe parte em perseguição à Furiosa e às suas concubinas fugitivas, escravas sexuais, que ela transportava secretamente para fora do povoado em seu veículo, um dos Garotos de Guerra, Nux (Nicholas Hoult) une-se ao grupo dos perseguidores, a despeito de seu estado de saúde debilitado, levando consigo sua bolsa de sangue, Max, que, depois de conseguir se libertar, alia-se, inicialmente a contragosto, à Furiosa e às concubinas fugitivas.

O ato mais importante de Max na história é o momento em que ele oferece uma alternativa à Furiosa, convencendo-a de que, em vez de prosseguir a viagem por uma vasta terra desértica, sem nenhuma certeza de que seu grupo logrará encontrar um terreno fértil e seguro, eles devem, juntos, conquistar a Cidadela desprotegida e depor Immortan Joe.

Furiosa não é uma mulher que precise ser protegida, tampouco uma mulher à espera de um homem que a salve. Max e Furiosa são iguais. O afeto que se constrói entre ambos, no decurso dos dias de fuga e combate, é o afeto baseado no reconhecimento do outro como um igual – um igual em intelecto, força, habilidades e coragem. O diálogo entre Max e Furiosa quando ele tenta convencê-la a mudar seus planos não é um embate entre a racionalidade, valorada como masculina e superior, e a sensibilidade, valorada como feminina e inferior, mas uma conversação entre duas racionalidades e duas sensibilidades que ouvem e ponderam os argumentos do outro. A alternativa proposta por Max à Furiosa somente se apresenta a ele mesmo não quando reflete racionalmente sobre os acontecimentos recentes e as possibilidades de ação, mas quando é novamente atormentado pelos fantasmas do seu passado, que apelam a seu sentimento de culpa, convencendo-o, emocionalmente, a não abandonar o grupo das mulheres em fuga e continuar a colaborar com elas.

É Furiosa quem, com o auxílio de Max, assassina Immortan Joe. Ao matá-lo, ela não está simplesmente se vingando de todo o sofrimento que sua mãe e ela padeceram em suas mãos, mas, antes de tudo, promovendo a justiça, em nome de todos os oprimidos pelo seu governo totalitário. Não há nenhuma possibilidade de conciliação com Immortan Joe. Não há perdão a quem não acredita no perdão e na redenção e a quem não acredita que seus atos constituam crimes atrozes. Sobretudo, para destruir a estrutura do mundo da Cidadela e construir um mundo outro, é preciso destruir Immortan Joe.

Ao final da história, a narrativa contrapõe uma comunidade política fundada em princípios valorados como femininos a um governo fundado em princípios valorados como masculinos. Compete justamente à Furiosa, às mulheres de sua tribo, que ela reencontra no deserto, e às concubinas fugitivas o papel de liderarem a construção de um mundo outro. Não por acaso, é a população miserável, sedenta e imunda que vive ao rés do chão, na região mais pobre da Cidadela, quem primeiro aclama Furiosa e seu grupo, ao verem o cadáver do ditador. Em êxtase, os miseráveis despedaçam o corpo de Immortan Joe. Não por acaso, são as Crianças de Guerra mais novas – aquelas que são, literalmente, crianças e pré-adolescentes e que ainda não tinham tido seu imaginário completamente colonizado pelas representações totalitárias do regime de Immortan Joe – que acionam o elevador para que Furiosa e seu grupo ascendam ao topo da cidade-estado, onde estava localizada a sede do governante morto. Não por acaso, são as mulheres que viviam escravizadas para fornecerem leite materno a Immortan Joe e seu séquito que abrem as comportas de água potável para os miseráveis sedentos e imundos, deixando-a jorrar livremente. São os miseráveis, as crianças, as mulheres escravizadas – os oprimidos, aqueles cuja vida não tinha nenhum valor na comunidade governada totalitariamente por Immortan Joe – quem reconhecem em Furiosa e seu grupo as agentes capazes de liderarem-nos na instituição de um mundo outro, cuja comunidade política seja fundada em princípios políticos valorados como femininos, em detrimento dos princípios políticos valorados como masculinos, os quais tinham sido o fundamento do regime anterior, que, em vez de promover a utilização não-predatória e a distribuição igualitária dos parcos recursos naturais, conservara-os escassos para assegurar a dominação sobre o povo, estabelecendo um estado de exceção contínuo. 

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Mad Max 2

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