A narrativa fílmica clássica que relata uma história de vida representa o indivíduo como uno e a existência como destino. O indivíduo não se constitui jamais como sujeito, na medida em que não apresenta fissuras e as experiências não o transformam no decurso do tempo. Aquilo que o indivíduo é, ele sempre foi e sempre será, havendo uma correspondência total entre o eu do presente e o eu do passado, entre o eu do presente e o eu do futuro. Moonlight – sob a luz do luar (2016), de Barry Jenkins, se desvia dessa forma de narrativa, para relatar a história de vida de um indivíduo que não é uno, mas múltiplo, um indivíduo que se esforça para se constituir como sujeito. Estruturado como um tríptico, o filme relata três histórias que se sucedem no tempo, a de Little (Alex R. Hibbert), o menino, a de Chiron (Ashton Sanders), o adolescente, a de Black (Trevante Rhodes), o homem adulto. De uma existência a outra há continuidades, mas também interrupções, lacunas. Há identidades, mas também diferenças. Little se transforma em Chiron, que se transforma em Black, mas de um fase da vida a outra não há uma continuidade inexorável; uma unidade que se preserva, inelutável.
O elemento de identificação entre Little, Chiron e Black não é tanto o fato de serem os três o mesmo o indivíduo. Em certa medida, não o são. Chiron foi Little, mas não é Little. Black foi Chiron e foi Little, mas não é nem Chiron nem Little. O que os identifica, então? As existências fendidas e unidas pela carência de afeto, a solidão e o sentimento de deslocamento e não-pertencimento.
Na primeira cena do filme, Little, apavorado, corre desesperadamente de um grupo de garotos que tenta agredi-lo. Posteriormente, no decurso da narrativa, Little e também Chiron e Black serão representados continuamente em movimento, deslocando-se entre diversos lugares. O sentimento de não-pertencimento e o impulso de deslocamento à procura de um lugar onde possa encontrar afeto e possibilidade de assentamento conduzem o devir do personagem e sua tentativa de se constituir como sujeito.
O introspectivo Little cresce em Miami, sem pai, presenciando sua mãe (Naomie Harris) se drogar e sendo acolhido por um traficante, Juan (Mahershala Ali), que assume a função de figura paterna para o menino. O tímido, frágil e hesitante Chiron, órfão do homem que o acolhera como um filho, vive em Miami com sua mãe, que se tornara viciada em drogas, esforçando-se para se desvencilhar das perseguições e agressões de colegas de colégio. Seu sentimento de deslocamento e não-pertencimento é agravado pela consciência da sua diferença sexual, a qual, apenas intuída por Little, se tornara incontornável durante a adolescência. Black, que seguiu os passos de Juan, é um poderoso traficante de drogas em Atlanta, onde vive solitário, distante da mãe, ex-viciada, com quem mantém um relacionamento tenso, marcado por lembranças dolorosas do passado e por feridas difíceis de serem cicatrizadas.
Um telefonema de Kevin (André Holland), o amigo de infância de Little, o rapaz com quem Chiron descobriu o prazer sexual e a quem amou em uma praia sob a luz do luar, põe Black em movimento, compelindo-o a viajar para Miami. Atormentado por uma recordação, movido pelo desejo, ele viaja esperando reviver uma inefável noite ao luar, sem compreender que não é possível viver novamente o passado.
No diálogo final, Kevin, reconhecendo a distância que separa Black de Chiron, a diferença entre o homem que acabou de conhecer e o adolescente de quem se lembrava, pergunta: “Quem é você, cara? Quem é você agora, Chiron?”. “Eu sou eu. Não estou tentando ser nada, além disso” – Black responde. Ele foi Chiron, ele foi Little. Ele, Black, não é Chiron, o adolescente de quem Kevin se recorda; como também o homem Kevin em face de quem ele se encontra não é o adolescente Kevin, cuja lembrança ele tinha conservado em sua memória. Kevin desejava uma recordação, uma representação que existia na sua memória, e se deparou com um indivíduo que não correspondia à imagem construída pelo seu desejo. Nesse momento, Black compreende que, por mais intenso que seja a atração que sente pelo homem que se encontra à sua frente, não pode se conformar a corresponder ao desejo do outro, como condição para ser objeto de um afeto. Ele é não mais o adolescente com quem Kevin passara uma noite ao luar em uma praia. Contudo, após se afirmar como sujeito – “Eu sou eu” – e, em seguida, fazer uma confissão, o forte e confiante Black termina chorando no ombro de Kevin, revelando-se tão solitário e carente de afeto quanto Chiron e Little. O movimento se suspende, como fora suspenso quando Black era criança, no dia em que Juan levara Little à praia e o ensinara a boiar nas ondas do mar. Sentado à beira da cama, ao lado do antigo amigo, Black pode (re)pousar, relaxar e receber afeto.
No último plano, Little, sozinho na praia, à luz da lua cheia, olha para trás, em direção ao prédio onde estão Black e Kevin: o homem não olha para o passado, mas o menino olha para o presente, tentando vislumbrar a possibilidade que, naquele momento, se apresenta no caminho, a possibilidade de um lugar no mundo pela abertura ao outro, a possibilidade do amor.
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