Museu do amanhã, sintoma do presente

Inaugurado por Eduardo Paes em 17 de dezembro de 2015, o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, foi a joia da coroa de obras de requalificação da Região Portuária e de modernização da cidade durante o governo do ex-prefeito do Rio de Janeiro. Projetado pelo arquiteto e engenheiro espanhol Santiago Calatrava, o edifício reluz à distância. Contudo, quem se aproxima com atenção da imensa bromélia branca rapidamente começa a distinguir fissuras na modernidade do diáfano e portentoso museu.

Somente um ano após sua inauguração, o edifício apresenta sinais de uma prematura deterioração, corporificando-se, inintencionalmente, como um duplo signo. Um signo da incompletude da periférica modernidade brasileira, a qual, projetando-se em um amanhã que jamais é alcançado, necessita, a cada presente, ser reiniciada, mediante processos de modernização que nunca cumprem suas virtuosas promessas. Um signo do futuro de ruínas e decrepitude que provavelmente aguarda a humanidade e também os seres transumanos que habitam a Terra, à medida que progride a mudança climática e, consequentemente, recrudesce a degradação dos ecossistemas do planeta.

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Localizado às margens da Baía de Guanabara, cuja despoluição fora prometida como um dos legados dos Jogos Olímpicos de 2016, o Museu do Amanhã pretende oferecer ao visitante “uma narrativa sobre como poderemos viver e moldar os próximos cinquenta anos”, “para ampliar nosso conhecimento e transformar nosso modo de pensar e agir”.

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A Olimpíada terminou, durou duas breves semanas. Estamos em 2107, mas a Baía de Guanabara continua poluída. De acordo com a Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro, serão necessários vinte e cinco a trinta anos para ser concluída sua despoluição. O Museu do Amanhã, uma obra megalomaníaca construída em uma cidade com museus mal conservados e museus inativos, é um signo da nossa periférica modernidade incompleta, ou seja, da nossa colonialidade, a qual estrutura tanto nossas relações sociais e econômicas como nosso imaginário. A compulsão para construir obras megalomaníacas, que afirmem uma modernidade pela qual ansiamos mas nunca atingimos, não promove alterações na nossa estrutura socioeconômica, mas, ao contrário, a reproduz e a reforça, constituindo-se como um dos sintomas da nossa colonialidade. Em vez de agirmos para promover mudanças estruturais, como o saneamento básico para toda a população e a despoluição da Baía de Guanabara, escolhemos construir um museu para, supostamente, nos conscientizar da importância de ações que promovam mudanças estruturais.

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O Museu do Amanhã não é um instrumento de esclarecimento. Em uma época em que se tornou para nós mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo, ele é tão-somente um instrumento de apaziguamento das nossas más consciências. Seu compromisso é, antes de tudo, com o espetáculo, não com a compreensão, pelo espectador que o visita, de que, nas palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “para imaginar o não fim do mundo é preciso imaginar o fim do capitalismo”. Quem o visita pode dormir tranquilamente, sem se angustiar com preocupações pelo futuro ou com terríveis pesadelos, pois cumpriu sua obrigação, está conscientizado da “força de alcance planetário” da ação humana. O Museu do Amanhã consiste não apenas em um sintoma da compulsão da nossa colonialidade pela construção de obras megalomaníacas, mas também em um sintoma da incapacidade de as sociedades contemporâneas se articularem politicamente para destruir um modo de produção ecocida e etnocida, antes que ele destrua o planeta, tornando-o inabitável para a espécie humana e formas de vida transumanas.

Das bordas da Praça Mauá, próximo ao Museu do Amanhã, crianças e adolescentes se divertem brincando de mergulhar na água imunda da Baía de Guanabara. São moradores pobres dos bairros e das favelas da Região Portuária, para quem as praias da Zona Sul são distantes e de difícil acesso. O que a requalificação da região do porto significou para eles e suas famílias? Que benefícios lhes proporcionou? O que significa o museu para eles? Qual amanhã lhes aguarda, se sobreviverem e não forem exterminados na guerra civil que, há décadas, vitima as populações que sobrevivem nas áreas onde impera o estado de exceção no Rio de Janeiro?

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Um relato pessoal sobre a polícia pacificadora do Pavão Pavãozinho

Primeira foto: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo mostram para policiais militares um homem ferido, talvez morto, estendido sobre o chão.

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Segunda e terceira fotos: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto. Seu rosto, seu peito, sua barriga, seus braços, suas pernas estão ensaguentados.

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Quarta foto: policiais militares carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto.

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O local é a ladeira Saint-Romain, no ponto de seu entrecruzamento com a rua Sá Ferreira, em Copacabana. A data, 22 de abril de 2014, noite do protesto dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo contra o assassinato de Douglas Rafael da Silva Pereira, o dançarino DG. O corpo ensaguentado de DG foi encontrado em uma creche do Pavão Pavãozinho. Ele morreu devido a uma hemorragia interna decorrente de uma laceração pulmonar provocada por um objeto – uma bala? – que perfurou seu tórax. Seu corpo apresentava sinais de espancamento, de acordo com sua mãe. O homem ferido ou morto que aparece nas fotos era Edilson da Silva dos Santos, que chegou morto ao Hospital Miguel Couto, devido a um ferimento de bala na cabeça. Ele foi baleado durante o protesto.

Mudei-me para a cidade do Rio de Janeiro, ondo resido atualmente, há um ano. Inicialmente, morei em Copacabana, na rua Sá Ferreira. Todas as noites, há policiais militares a postos no ponto onde essa rua e a ladeira Saint-Romain se interceptam. Policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Diariamente, eu passava pelo entrecruzamento da rua Sá Ferreira e da ladeira Saint-Romain ou ao lado, andando pelo lado oposto da rua.

Em uma noite de junho de 2013, após voltar do trabalho, saí de casa para comprar pão em um dos supermercados próximos. Ao atravessar a ladeira Saint-Romain, vi um rapaz que a descia ser abordado pelos policiais de plantão. Aparentemente, ele, que trajava bermuda, camiseta e chinelos, cometera o gesto suspeito de tão-somente descer a ladeira. Preocupado com sua segurança, parei e decidi acompanhar a abordagem. O rapaz tinha sido obrigado a se posicionar contra um muro e estava prestes a sofrer um baculejo. Um dos policiais – que era negro, como a maioria dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo – percebeu minha presença e me chamou. Fui a seu encontro. Como o rapaz, eu também fui obrigado a me posicionar contra o muro e também sofri um baculejo. Em seguida, o policial que me abordara perguntou-me, em tom arrogante e irascível, se eu conhecia o rapaz e se estava com ele. Ele sabia que não. Em face de minhas respostas negativas a ambas as perguntas, o policial iniciou uma sessão de intimidação: se eu não conhecia o rapaz, se não estávamos juntos, por que eu estava olhando? Assustado, tentei manter a calma e argumentar que toda pessoa tem o direito de acompanhar uma ação policial. Minha resposta o irritou ainda mais. Ele negou que eu tivesse esse direito, perguntou-me se eu estava olhando para julgar a ele e a seu colega e afirmou que ninguém se prontificava a ajudá-los, mas todos queriam julgá-los. (Naqueles dias, os policiais, sobretudo os da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, deparavam-se, no decurso das jornadas de junho, com uma resistência popular inédita a suas ações arbitrárias e violentas, sentindo-se acuados.) A partir desse momento, mantive-me calado, pois percebi que não havia nenhuma possibilidade de um diálogo razoável com aquele policial que me negava o direito de acompanhar a atuação de dois servidores públicos (militares) em um espaço público.

O rapaz foi liberado. Eu fui liberado.

Sou um homem branco, de classe média, que morava em Copacabana – e fui tratado dessa forma por policiais da PMERJ, por ter cometido o crime de acompanhar uma abordagem policial. Quantas vezes DG e Edilson, assassinados provavelmente por policiais militares, não sofreram, antes de morrerem, um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais? DG e Edilson eram negros e favelados. Quantas vezes seus parentes, seus amigos, seus vizinhos não sofreram um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais?

O Pavão Pavãozinho e o Cantagalo são favelas classificadas como pacificadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, como uma comunidade pode ser considerada pacificada se está sob ocupação militar? Que gênero de paz é esse que apenas pode ser garantido pela intervenção contínua e ininterrupta de uma força militar policial – a qual, supostamente, deveria proteger os moradores da comunidade, mas os trata a todos como suspeitos, criminosos em potencial?

O que aconteceu comigo naquela noite evidencia um dos problemas estruturais das polícias brasileiras, não apenas da polícia militar: o fato de que os policiais – os quais, pois é sempre importante reiterar, são, todos eles, servidores públicos – se consideram acima das leis e da justiça. No Brasil, as polícias não estão a serviço da população, não existem e não atuam com a finalidade de servir a população, mas com o objetivo de assegurar a conservação da ordem pública. Para garantir a manutenção dessa ordem pública, os policiais – orientados por representações e valores racistas e classistas, ou seja, orientados, portanto, por um imaginário e uma moralidade estruturados contrariamente à dignidade humana, à democracia e aos direitos – reputam-se autorizados a utilizar todos os meios violentos disponíveis, seja contra os indivíduos que corporificam signos das representações dos personagens perigosos e essencialmente ameaçadores à ordem, seja contra os indivíduos que, embora não corporifiquem signos das representações de personagens perigosos, terminam, em decorrência de suas ações, por se revelar, da perspectiva policial, como ameaçadores à ordem. O rapaz que eu vi descer a ladeira Saint-Romain e ser revistado pelos policiais militares pacificadores era perigoso porque corporifica o personagem do favelado, constituindo uma ameaça essencial à ordem. Eu fui considerado perigoso porque cometi o crime de acompanhar uma ação policial. Meu ato de testemunhar era ameaçador porque consistia em uma tentativa de questionamento da legitimidade da revista policial em curso, a qual era obviamente arbitrária. Na medida em que as polícias não se orientam pelas leis e pela justiça, mas pelos imperativos do seu imaginário e da sua moralidade particulares, representam a ordem que devem preservar não como pública, comum a todos, mas como um objeto do qual são as proprietárias, o que autoriza os policiais a interpretarem qualquer ameaça a sua propriedade privada como uma ameaça a eles mesmos e às instituições às quais pertencem. Uma ameaça – imaginária ou real – à ordem é uma ameaça às polícias. Uma ameaça – imaginária ou real – às polícias é uma ameaça à ordem.

O que aconteceu comigo naquela noite foi horrível. Voltei para casa transtornado, sentindo-me agredido e impotente. Entretanto, foi somente um susto, nada mais, em comparação com as violências policiais que, todos os dias, vitimam os moradores do Pavão Pavãozinho e do Cantagalo, bem como toda a população negra ou pobre ou moradora de rua do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil.

“A mulher arrastada” – corpos violentáveis e a naturalização da violência policial

Não estamos todos perplexos com a morte de Cláudia Silva Ferreira – mulher, negra, pobre, casada, mãe de quatro filhos, moradora do Morro da Congonha, em Madureira, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Hospital Naval Marcílio Dias e era responsável pela criação de quatro sobrinhos.

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Para a mídia corporativa, Cláudia Silva Ferreira não é uma mulher que foi assassinada, barbaramente assassinada, por policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, mas a mulher arrastada por policiais militares. Nos últimos dias, a retórica eufemística do jornalismo brasileiro, deliberadamente orientada a evitar todo estímulo à indignação coletiva contra a injusta ordem pública de cuja preservação a polícia militar é uma das principais responsáveis, atingiu o paroxismo. O significante ‘arrastado’ foi empregado não apenas como um adjetivo, mas também como um substantivo, como, por exemplo, em três manchetes do portal de notícias G1, das Organizações Globo: “Moradores fecham via após enterro de arrastada por carro da PM no Rio”, “‘Meu pai não vai conseguir cuidar de todos’, diz filho de arrastada por PMs”, “Arrastada por carro da PM do Rio foi morta por tiro, diz atestado de óbito”.

Muito provavelmente, o assassinato de Cláudia Silva Ferreira não teria sido noticiado ou teria sido noticiado sem destaques, como uma das muitas mortes que, todos os dias, ocorrem em confrontos com policiais militares nas cidades brasileiras, caso ela não tivesse sido arrastada por uma viatura policial. Seria reportado, se fosse, exclusivamente como um efeito colateral ou um excesso policial ou um erro. Uma baixa inocente e lamentável, mas inevitável, na guerra necessária contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Todos sabemos, a guerra é a única forma possível de se enfrentar o crime organizado e o tráfico de drogas. Não que a morte de Cláudia não esteja sendo noticiada dessa maneira, como um não-homicídio. Está. Afinal, na maioria das reportagens, ela não é a mulher assassinada ou, ao menos, a mulher morta por policiais militares, mas “A mulher arrastada” ou, tão-somente, “A arrastada”. O vídeo de Cláudia Silva Ferreira sendo arrastada por cerca de 350 metros, ao ser transportada a um hospital na caçamba de uma viatura da PMERJ, atraiu a atenção da mídia corporativa, convertendo seu assassinato em notícia, mas possibilitou também, convenientemente, que a comoção coletiva pudesse ser desviada do fato de ela ter sido assassinada para o fato de ter sido arrastada por policiais militares. Decerto, o arratamento de um indivíduo, em si, corporifica um ato bárbaro, consistindo em um fato demasiado grave. O problema é que Cláudia Silva Ferreira não foi apenas arrastada por policiais militares, mas também assassinada por policiais militares. Contudo, a mídia corporativa e o poder público têm silenciado o segundo fato.

Em face de atos de violência policial como o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, os arautos do bom senso exortam-nos a sermos cautelosos, alertando-nos para o perigo de não separarmos o joio do trigo, para o risco de jogarmos fora a criança com a água do banho: há bons policiais, não podemos esquecer.

A polícia militar brasileira é uma instituição que exige de seus membros a incorporação total de seu imaginário, de sua moralidade e de seu código de conduta. Os soldados devem incorporar as representações, os valores e os hábitos da instituição, sem jamais duvidar de sua necessidade e justeza, sem nunca questioná-los, mesmo se não estiverem inscritos em nenhuma lei do ordenamento jurídico. Os pontos situados fora da curva não são, para utilizar o vocabulário pessoalista que reduz problemas sociais a desvios de caráter, os maus policiais, mas os bons policiais. A estrutura da polícia militar está estruturada para produzir a figura do policial agressivo e que sistematicamente desrespeita os direitos. A polícia militar não é uma instituição que apresenta problemas, mas constitui, por si mesma, devido a sua estrutura, um problema social. Os três policiais militares que assassinaram Claudia Silva Ferreira, dois subtenentes e um sargento, estão envolvidos em sessenta e dois autos de resistência ou resistências seguidas de mortes, sendo responsáveis por sessenta e nove mortes. Somente um dos subtenentes está envolvido em cinquenta e sete autos de resistência, tendo assassinado sessenta e três pessoas!

A violência policial, que na sociedade brasileira adquiriu a dimensão de um hábito, passando a ser naturalizada e tacitamente justificada, motivo pelo qual não nos surpreende e não nos indigna, dirige-se, antes de tudo, contra os corpos que nossa cultura significa como passíveis de ser violentados: corpos índios, corpos negros, corpos pobres ou miseráveis, corpos femininos cisgêneros, corpos transgêneros, corpos não-heterossexuais. Não obstante, não são esses os únicos corpos que podem ser violentados pela polícia militar. Repete-se que, nas áreas nobres das cidades, os policiais militares não agem da mesma forma pela qual se conduzem nas favelas e nas periferias. Todavia, há dois equívocos nessa verdade autoevidente. (1) Aos corpos classificados pela cultura como passíveis de ser violentados está sempre sancionado dispensar uma atuação violenta, não importa o local onde estejam posicionados. (2) Embora a cultura opere uma clivagem entre corpos violentáveis e corpos não-violentáveis, a qual é reconhecida e seguida pela polícia militar, esta opera uma segunda clivagem, entre indivíduos ameaçadores à ordem e indivíduos não-ameaçadores. Em uma situação de conflito entre as duas clivagens, prevalece a segunda. Os corpos classificados como violentáveis compreendem justamente os indivíduos representados como ameaças naturais à ordem. Contudo, um indivíduo cujo corpo em princípio seja não-violentável pode tornar-se, ou melhor, pode terminar revelando-se um indivíduo ameaçador à ordem. Todo indivíduo que constitua uma ameaça à ordem pode ter seu corpo violentado, ainda que seu corpo não fosse classificado, anteriormente, como um corpo violentável.

Quem define quem são os indivíduos ameaçadores à ordem? A própria polícia militar. Essa foi a lição que parcela da população brasileira, branca e de classe média, aprendeu durante as revoltas de junho de 2013. Reitero o que escrevinhei à época. “As representações, os valores e os hábitos da polícia [militar] são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade”, na medida em que todo indivíduo pode terminar revelando-se uma ameaça à ordem, sendo reduzido a um corpo violentável. No decurso das revoltas do ano passado no Rio de Janeiro, um hospital público e uma organização não-governamental de assistência a crianças e adolescentes carentes soropositivos foram considerados locais que abrigavam indivíduos ameaçadores à ordem, sendo atacados com bombas de gás lacrimogêneo.

Lamentavelmente, talvez somente consigamos extinguir a polícia militar se e quando a parcela da população cujos corpos são, em princípio, não-violentáveis tornar-se, da perspectiva dos policiais militares, uma ameaça à ordem e objeto sistemático da violência institucionalizada.

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Vai ter Copa – mas não vai ter Copa!

Evidentemente, vai ter Copa! De um jeito ou de outro, vai ter Copa! Sim, vai! Infelizmente!

Nós, que dizemos ou escrevemos “Não vai ter Copa”, não somos imbecis! Imbecil é quem interpreta apenas literalmente o significado de um enunciado. Nós sabemos que, infelizmente, vai ter Copa.

Obviamente, preferiríamos que fosse não ter Copa, mas sabemos que, sim, vai ter Copa. Infelizmente!

Como manifestação de discordância, “Não vai ter Copa” identifica uma tomada de posição, a delimitação de um espaço político outro, um lugar ex-cêntrico, marginal ao espaço nacionalista e desenvolvimentista construído pelos governos do PT e seus aliados partidários, pela FIFA, pela CBF, pelas empreiteiras, pela mídia corporativa, pelos patrocinadores oficiais.

Dizer ou escrever “Não vai ter Copa” significa posicionar-se contrariamente aos recursos públicos investidos em empreendimentos privados, às obras megalomaníacas e hiperfaturadas, às remoções e às, quando existentes, indenizações miseráveis; significa posicionar-se pela distribuição de renda, pelo direito à moradia e à cidade, pelo direito ao lazer e ao esporte, pela direito à educação e à saúde, pelo direito ao saneamento básico, pelo direito ao transporte, pelo direito à livre manifestação do pensamento e pelo direito de reunião, pela desmilitarização da polícia de segurança pública.

Nós temos o direito de discordar, de sermos dissidentes. Temos o direito de sermos contrários à Copa. Temos o direito de sermos antinacionalistas. Temos, inclusive, o direito de torcermos contra a Seleção Brasileira de Futebol. Temos o direito de resistir, inclusive violentamente, às arbitrariedades e violações promovidas pelo Estado. Vocês não têm o direito de nos retirar esses direitos!

Sim, vai ter Copa – mas continuaremos dizendo ou escrevendo “Não vai ter Copa”!

Vocês que, por desinformação ou desonestidade, defendem a Copa, vocês são cúmplices, ou melhor, promotores ativos de todas as irregularidades e barbáries que estão sendo perpetradas para a realização da Copa, bem como das muitas que ainda serão perpetradas. A Copa é de vocês! De vocês, que querem a Copa, que dizem ou escrevem: “Vai ter Copa”. Portanto, assumam suas responsabilidades! Assumam todas as irregularidades e barbáreis que estão provendo! Querem a Copa? Tudo bem! Vocês têm o direito de querer a Copa. Contudo, vocês não podem ter apenas uma parcela da Copa, aquela parcela que consideram bela e prazerosa. Se querem a Copa, devem tomar para si a Copa em todas as suas dimensões. A copa é de vocês – tanto a Copa do espetáculo, como a Copa das irregularidades e barbáries.

Nós não queremos nem uma nem outra Copa, porque sabemos que o espetáculo é indissociável das irregularidades e das barbáries. Recusamos o nacionalismo desenvolvimentista, o ufanismo alienante, explorador e excludente.

Vai ter Copa, mas para vocês. Para nós, não vai ter Copa, porque decidimos, conscienciosamente, não promover o circo de horrores e não aplaudir suas atrações.

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Bola da Copa do Mundo da FIFA de 2014

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Quem tem medo dos índios?

A necessidade de proteção contra a violência dos povos indígenas, fantasma terrífico que assombra atualmente os sonhos desenvolvimentistas do agronegócio e do setor hidrelétrico brasileiros, não é uma constante universal, uma necessidade atemporal, como argumenta, falaciosamente, a retórica do progresso. Não existe, de fato. Existiram e existem tão-somente experiências de necessidade de proteção contra atos de violência praticados por povos indígenas, atos de violência que se constituíram, espacial e temporalmente, como reações, no decurso de empreendimentos de colonização, na América Portuguesa, e no decurso de empreendimentos de colonização interna, que, iniciados após a formação do Estado brasileiro, permanecem sendo promovidos há quase duzentos anos.

A necessidade de proteção é um topos que se impõe na retórica do progresso em seguida à apropriação do território de um povo selvagem ou bárbaro por um povo civilizado. Conquistado o território, torna-se necessário protegê-lo contra as invasões bárbaras. A necessidade de proteção opera também como um topos justificador de novas conquistas, imprescindíveis à proteção efetiva do território apropriado mas ameaçado.

Os topoi que precedem ao da necessidade de proteção, com a função de justificar a conquista a ser empreendida, representam o território como (1) desabitado (sertão bruto) – independentemente de ser verdadeira a convicção na inexistência de vida humana ou de ser o território falsamente representado como desabitado –, (2) precariamente habitado ou (3) habitado por uma população inculta e primitiva, atrasada ou subdesenvolvida, cujo progresso o povo civilizado está obrigado a promover, elevando-a a um estágio civilizacional, mas não necessariamente ao seu, ao desprovê-la de sua alteridade, re(des)figurando-a como uma imagem, senão idêntica, ao menos assemelhável à sua.

O topos da necessidade de proteção contra a violência dos índios justificou a realização, no dia 7 de dezembro, do evento adequadamente denominado, da perspectiva da retórica do progresso, Leilão da Resistência, uma iniciativa dos produtores rurais de Mato Grosso do Sul, da qual participaram senadores, deputados federais e deputados estaduais, destinada à arrecadação de recursos financeiros para a promoção da segurança armada de fazendas sul-mato-grossenses contra invasões indígenas. Da perspectiva dos povos indígenas e dos não-índios que defendem os direitos indígenas, o evento deveria ter sido denominado Leilão do Extermínio.

O topos da inexistência de vida humana em um território – falacioso, no caso, pois na região vivem índios da etnia munduruku e comunidades tradicionaisfoi mobilizado, no dia 10 de dezembro, pelo jornalista Luis Nassif, para justificar a construção de uma usina-plataforma no rio Tapajós. De acordo com ele, “será a primeira vez que se construirá uma hidrelétrica em região não habitada”.

PS: é extremamente importante assinalar também o antropocentrismo em que se funda o discurso de Nassif. O fato de que a usina hidrelétrica seria construída em uma região desabitada é apresentado como suficiente para reduzir “os fatores de atrito com as entidades ambientais”: “[s]erá um empreendimento localizado em ponto bem específico e sem implicações ambientais”. Os impactos do projeto são medidos exclusivamente pela régua antropocêntrica. Como (supostamente) inexiste vida humana no território, não serão produzidos impactos sobre seres humanos: logo, não serão produzidos impactos sobre o meio ambiente. Não por acaso, o texto não se refere a implicações sobre a natureza, mas a implicações ambientais, ou seja, a implicações sobre o meio ambiente. O meio ambiente é a natureza que existe apenas em função do humano e que, portanto, pertence por direito somente ao humano, pois no meio, parte equidistante dos diversos pontos da periferia, no centro do ambiente, domina solitário o humano. O meio ambiente é a natureza onde as formas de vida não-humanas estão relegadas às periferias, destituídas de direitos.

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[Aldo V. Silva] Manifestação do Fórum Social de SorocabaManifestação do Fórum Social de Sorocaba, em Sorocaba, a 9 de novembro de 2012
(Foto de Aldo V. Silva)

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Por quanto tempo continuaremos a achar que é normal sentirmos medo da polícia?

Os brasileiros aprendemos, muito cedo, a não confiar na polícia e a temer a polícia. Aprendemos, muito cedo, as formas pelas quais devemos nos comportar corretamente em presença de um policial. “Polícia”, “policial”: significantes que enunciamos cotidianamente significando, na maioria das vezes, não o conjunto dos órgãos policiais do Estado e todos os agentes policiais, mas com os significados de “polícia militar” e “policial militar”. Evidentemente, as polícias militares estaduais e do Distrito Federal, bem como as polícias civis e federais, possuem seus inimigos principais: o negro, o pobre, o miserável, sobretudo: o negro pobre ou miserável, elementos perigosos por natureza, cuja mera existência constitui uma ameaça à ordem que deve ser preservada.

A ordem: os órgãos policiais militares, que são “forças auxiliares e reserva do Exército” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 144, § 6º), não existem para salvaguardar os indivíduos, a sociedade, mas para garantir a preservação desta entidade abstrata, a ordem instituída pelo Estado e pelo capital, ou, na letra do texto constitucional, para realizar “a polícia ostensiva” e para preservar a “ordem pública” (Constituição, art. 144, § 5º).

Não obstante a polícia possua seus inimigos principais, que sofrem regularmente e mais intensamente a arbitrariedade e a violência policiais, o sentimento de não-confiança e de temor, o conhecimento das normas de comportamento não-escritas, tácitas, que o indivíduo deve obedecer quando em presença de um policial são um sentimento e um conhecimento compartilhados por toda a população. As representações, os valores e os hábitos da polícia são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade. Esse é o motivo pelo qual, todos nós, em maior ou menor grau, não confiamos na polícia, tememos a polícia e nos esforçamos para nos comportar corretamente em presença de um policial. Sabemos que a polícia não existe para nos salvaguardar, que, por qualquer motivo e a qualquer momento, todos podemos, ainda que alguns certamente com mais facilidade do que outros, ser considerados inimigos. Os terríveis acontecimentos que vem ocorrendo nas últimas semanas em diversas capitais – especialmente os que ocorreram ontem em São Paulo, quando a polícia atacou com extrema violência os manifestantes que participavam da passeata pela redução do preço da tarifa do transporte público, mas também jornalistas e muitos transeuntes que não participavam da manifestação – apresentam ao menos uma virtude: lembrar-nos de qual é a finalidade que fundamenta a existência da polícia militar e, consequentemente, nos recordar de que, para uma instituição em estado de guerra permanente, todos que não integram suas fileiras, os outros, são possíveis ameaças, possíveis inimigos que devem ser combatidos.

Por quanto tempo nós brasileiros continuaremos a achar que é normal sentirmos medo da polícia?

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Violento é o Estado

Sobre Marina Silva – nem com nem contra

Um amigo que votou em Marina Silva nas últimas eleições presidenciais me confessou que, a despeito da admiração, sente dificuldades para continuar apoiando-a. Tenho pensado muito nas palavras dele nos últimos dias, em decorrência do partido político criado por iniciativa da ex-ministra do Meio Ambiente dos governos Lula. A intensidade da atração exercida por Marina me parece ser tão intensa quanto a rejeição que provoca. Tive o privilégio, privilégio porque foi uma experiência bela, de ouvi-la falando publicamente, anos atrás, na época em que exercia seu primeiro mandato como congressista. Marina não era tão famosa no Brasil. Lembro-me de que a amiga que estava sentada a meu lado me perguntou quem era ela. Socioambientalista brasileira de renome mundial, natural do Acre, foi amiga e companheira de luta de Chico Mendes, atualmente é senadora pelo Partido dos Trabalhadores  – respondi. Era uma noite de 1999, no Museu da Imprensa Nacional, em Brasília. Nos anos que se seguiram, acompanhei com admiração sua atuação política, mas votei em Dilma Rousseff no primeiro turno das eleições presidenciais. Não me arrependo da minha escolha, simplesmente porque foi uma escolha que fiz com convicção. Contudo, a convicção não elude a possibilidade de mau julgamento, de equívoco. Não pretendo votar novamente em Dilma, para qualquer cargo eletivo. Teria preferido votar em Marina? Acho que Marina estaria, na condição de chefe do Poder Executivo Federal, exercendo uma atuação superior à de Dilma? Sou bacharel em história, não preciso que ninguém – didaticamente e, talvez, sarcasticamente – me explique que não posso asseverar o que teria acontecido se. Não me empenho em dispender meu tempo em exercícios vãos. No entanto, tenho a impressão de que estaria satisfeito com um governo de Marina, quando não demonstro satisfação nenhuma em relação ao governo de Dilma. Não tenho intenção de tentar expor meus motivos, tampouco de convencer alguém, simplesmente porque se trata tão-somente de uma impressão. Acredito que ao menos algumas importantes transformações socioeconômicas talvez pudéssemos estar vivenciando, transformações que, evidentemente, não vivenciamos e não vivenciaremos em nenhum governo de um presidente eleito pelo PT. A impressão nasce de um sentimento de empatia por, de uma identificação com, de uma confiança em Marina, que não pretende racionalizar. Por mais racionais que tentemos ser, subsiste um âmago de irracionalidade na ação política. Somos movidos também por um patos político. Sem paixão, jamais haverá revolução. Não pretendo votar novamente em Dilma e, provavelmente, não votarei em Marina caso ela torne a se candidatar à Presidência da República. Interessa-me sua agenda socioambiental, da qual decorreu, no decurso das últimas três décadas, uma relevante atuação nos combates socioambientais, iniciada quando, para muitos de nós, incluo-me neste nós, a questão ecológica se reduzia ao espetáculo midiático da preservação do mico-leão dourado. Tenho muitos amigos que votaram em Marina para presidenta – o amigo referido no início do escrevinhamento é apenas um deles. Tenho amigos que estão engajados no processo de construção do partido de Marina. São todos pessoas que admiro intelectualmente. Não consigo acompanhá-los, contudo. Se a agenda socioambiental de Marina me interessa, a influência de seus valores religiosos sobre suas ideias políticas, suas posições ou suas tentativas de não se posicionar em relação a questões como direitos femininos e direitos glbt’s, e parcela de suas alianças religiosas e políticas não me permitem partidarizar com Marina. Não obstante, conquanto Marina não exerça sobre mim atração, não exerce também rejeição. Ela merece minha atenção. Estou convencido de que suas ideias e propostas políticas socioambientais precisam ser discutidas. No cenário onde nos encontramos, um cenário que não está se abrindo, mas um cenário que está aberto há, no mínimo, um século, o problema que enfrentamos é a própria possibilidade da continuidade de existência da vida humana no planeta que nós, animais humanos, habitamos e estamos destruindo. Marina desempenha um papel importante nos combates socioambientais. Portanto, na questão socioambiental, prefiro estar ao lado de Marina, ainda que seu posicionamento possa não me parecer suficientemente radical, e não pretendo que minhas convicções nos campos das questões anticapitalista, feminista e queer me impeçam de escutar o que ela possa ter de relevante a dizer acerca de outras formas de vida e de relação com o mundo natural. Para mim, Marina, como afirma Eduardo Viveiros de Castro, faz as pessoas pensarem, ou, se se preferir, pode nos ajudar a pensar – e urge que pensemos.

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Mundos mortos, mundos que morrem

Criança pequena, viajei a Dourados. Conservo pouquíssimas e fragmentárias imagens daqueles dias. Ficamos na casa de uma tia, de quem eu passaria a gostar muito, segunda irmã do meu pai. Estão ambos mortos. Podemos sentir a passagem do tempo quando percebemos que o número de parentes e amigos perdidos não é pequeno e quando constatamos que, dentre os vivos, há mais de um para quem não restam muitos anos – supondo-se, como sempre supomos, que morrerão de velhice.

Hoje, uma imagem antiga, desfocada e esmaecida, que eu não estava tentando recordar, aflorou em minha mente. Lembro-me de ter ficado impressionado com os índios que via pelas ruas de Dourados, pobres ou miseráveis. A imagem de um desses índios, mendigando. Eu perguntando a minha tia, outra irmã do meu pai. Uma pergunta sobre os índios, da qual não me recordo, como tampouco me recordo da resposta. Uma pergunta de estranhamento, de menino impressionado. Por anos, a representação dos índios em meu imaginário correspondeu à lembrança daqueles índios andrajosos que vira, próximos de mim e, ao mesmo tempo, distantes. Índios que não pareciam índios. Todavia, índios que viviam em suas ‘aldeias’, que não passavam necessidades, de aspecto não abatido – índios que pareciam índios –, eram imagens em revistas ou na televisão. Longínquos, inacessíveis – e exóticos.

Eu era uma criança que não conseguia se relacionar bem com a diferença. Suspeito que devido ao fato de que sentia em mim mesmo uma diferença que não suportava e da qual desejava me libertar. (Ou então, para não ser condescendente, talvez eu simplesmente tenha me tornado, a partir de uma determinada idade, uma criança dotada de pouca empatia.) Os índios maltrapilhos me causavam repulsa – não no início, depois. Todos os índios que vi em Dourados e de que não me lembro talvez estejam mortos. Nunca refleti acerca do destino deles, em particular. O mundo em que tinham vivido ou em que seus ancestrais viveram certamente estava morto, naquele tempo. Colonização e progresso – palavras que eu ainda não conhecia.

Quem quer ser índio, na infância? Ser, não brincar de ou se fantasiar de. Os meninos brincam fingindo que são índios – mas não índios brasileiros, cujas etnias nem sequer conhecem, índios americanos, perseguidos por caubóis. Colonização do imaginário. Meninos e meninas se fantasiam de índios no carnaval. Não parece absurdo a pais e mães fantasiarem seus filhos – ou a si mesmos – de índios, muito embora não lhes ocorra fantasiá-los de argentinos, japoneses ou suecos. Fantasiar-se de uma identidade pertencente a outra etnia, região ou nacionalidade é uma performatização de uma caricatura, feixe de signos que asseguram uma identificação imediata, porque considerados, em alguma medida, constitutivos da essência do exótico que é fantasiado.

Índios vivem na floresta, em perfeita comunhão com a natureza, uma união sagrada. Índios são ingênuos, puros, avatares de uma inocência que os civilizados perderam. Representações infantilizantes, tão infantilizadas quanto as representações das crianças que correm e pulam gritando ô ô ô ô. Índios são ignorantes, atrasados, não compreendem as necessidades da civilização, os imperativos do progresso. Desprezo civilizado pelo primitivismo dos índios, que vivem aprisionados por suas superstições, e incapacidade do civilizado de compreender a irracionalidade da crença coletivamente compartilhada na inelutabilidade do progresso – considerado tão inelutável quanto o foi, no passado, o Juízo Final –, contra a qual toda resistência é vã.

Quando os cem quilômetros da Volta Grande do Xingu tiverem secado, um meio ambiente terá sido destruído e um mundo terá morrido. Diversidade natural e diversidade cultural não possuem utilidade instrumental para o capital. Os índios poderão finalmente se tornar trabalhadores na civilizada sociedade capitalista tardia ou representar o espetáculo turístico do teatro das crenças e dos rituais das sociedades primitivas. Em última instância, poderão viver nas periferias miseráveis das cidades ou viver nas ruas, mendigando – como os repulsivos índios de Dourados, na minha infância.

Podemos perceber que nossa sociedade progride quando constatamos que o número de outras sociedades no mesmo espaço geográfico, em territórios distantes conquistados ou em territórios fronteiriços está diminuindo. A redução da diversidade natural e da diversidade cultural, a barbárie, a expansão de um mundo unificado e unívoco são sempre indícios seguros do progresso.

Os índios não são apenas entraves práticos, são também entraves simbólicos. Ao menos aqueles que conseguiram preservar, sem cessar de recriá-las, culturas que consistem, por si, em uma refutação do nosso ideal civilizacional totalitário, fundado na antidiversidade natural e cultural.

Contemplo as imagens da floresta onde nunca estive. Temo que esteja sendo destruída e que os mundos que nela existem estejam morrendo.

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Vidas que precisam ser curadas

Há cerca de dez anos, durante uma festa de Ano Novo, dois amigos e eu nos envolvemos, não me recordo como, em uma tensa conversa sobre homossexualidade, com o na época namorado da anfitriã. Maneira melhor de nós três nos divertirmos aquela noite não havia, claro. A certa altura, a paciência dos meus amigos se esgotou e eles se retiraram. Eu, idiota teimoso, me mantive firme. Em determinado momento, o diálogo se converteu em um monólogo em que as frases invariavelmente começavam com o sintagma: “[Vocês] os gays”, “[Vocês] os gays”, “[Vocês] os gays”. Meu ânimo para contestar se extinguira, porque conversávamos havia bastante tempo e porque eu percebera que não tinha meios para rebater as afirmações do meu interlocutor. Não se baseavam nem na experiência nem no conhecimento, eram uma crença baseada em um imaginário heteronormativo e homofóbico. Ele acreditava que os homossexuais masculinos eram exatamente como ele os representava. Eram, por exemplo, pessoas mais cruéis do que as pessoas heterossexuais – mais cruéis do que as mulheres heterossexuais, inclusive. No seu imaginário, não existia os homens homossexuais, mas homossexual masculino, que pode ser definido como um personagem fictício, constituído de uma essência que se mantém estável do nascimento à morte e que se expressa no conjunto das suas emoções, dos seus pensamentos, das suas expectativas e das suas ações. Todos os homens gays são compostos por essa essência, nenhum deles é um indivíduo, com uma trajetória de vida e características particulares, cada um deles é um homossexual.

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Re-criminalize-sodomy

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Ele não era religioso, o ex-namorado da minha amiga. Relato a história porque, formalmente, a crença dele é idêntica à crença dos cristãos fundamentalistas que apregoam que a homo e a bissexualidades, o travestismo e a transexualidade são doenças que devem ser curadas. Todos os gays, todas as lésbicas, todos os homens bissexuais, todas as mulheres bissexuais, todas as travestis, todos os homens transexuais e todas as mulheres transexuais estão doentes. A diferença é que, na perspectiva religiosa fundamentalista, a doença é uma falsa essência, uma essência que se justapõe à verdadeira, tornando-a enferma e controlando-a, passando, assim, a constituir uma segunda essência, que faz gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais serem como são e agir como agem – mas uma essência doentia que pode ser tratada.

Há duas contradições na crença cristã contemporânea de que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade são doenças.

(1) Não há, na Bíblia, nenhum versículo que proclame ou, ao menos, sugira que são doenças. Trata-se de uma crença que não possui fundamento no livro sagrado do cristianismo. Quem o diz não sou eu, mas o renomado e insuspeito filósofo Olavo de Carvalho. As próprias identidades homo e bissexual, que não existiam na sociedade hebraica antiga, não configuram pecados. O que as leis transmitidas por Deus a Moisés condenam são práticas: “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação” (Bíblia, A. T. Levítico, 18:22). Caso permaneça vigente a interdição às terapias de reversão de sexualidades patológicas, exarada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), na Resolução n. 1/99, os cristãos fundamentalistas inconformados poderiam, como último recurso, tentar restaurar, com base nos direitos constitucionais à liberdade de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 5º, VI), a arcaica penalidade divina prescrita aos praticantes de atos homoeróticos: “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação; deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles” (Bíblia, A. T. Levítico, 20:13).

(2) Uma doença não pode ser, concomitantemente, um pecado. Todo pecado, mesmo se na forma de um pensamento ou de uma omissão, é uma ação. O homem é pecador: ele peca, ele comete pecados, mas ele não sofre pecados, sofre (de arrependimento ou dos castigos infligidos por Deus) pelos pecados cometidos. Para pecar, o homem precisa agir. A doença, contrariamente, não é uma ação. O homem adoece, ou seja, torna-se doente: ele está doente, ele tem uma doença, ele sofre uma doença ou de doença. A doença é uma condição do corpo, um estado que pode ser transitório ou contínuo. O homem pode persistir na prática de um ato pecaminoso, mas ele não tem um pecado, ele comete reiteradamente um pecado. Uma doença pode ser uma punição divina por um pecado – como pode decorrer também de uma maldição ou de uma possessão demoníaca –, uma consequência de um ato pecaminoso, mas uma doença (condição, estado), supondo-se que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade sejam patologias, conforme prega o cristianismo fundamentalista e a psicologia cristã, não pode ser, simultaneamente, um pecado. Em consonância com o texto bíblico, a doutrina católica não concebe a homo e a bissexualidades (condições, estados) como pecados, o pecado é o ato homoerótico, prática sexual contra natura.1 Se não pode uma doença ser um pecado, tampouco pode ser a causa de um pecado. Uma doença não conduz a uma ação, apenas uma decisão pode conduzir a uma ação. Se pecar é agir, para pecar o homem precisa decidir, consciente ou inconscientemente, agir. A causa de um pecado é sempre uma decisão. A tentação incita o homem a pecar, mas não o obriga a pecar. Uma doença, mantendo-se a suposição de que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade sejam patologias, pode tentar o homem, tornando-o doente de desejo, porém ele deve resistir à tentação. Se peca, é porque, não conseguindo resistir, decidiu pecar.

A via proposta pela autodenominada psicologia cristã ao paciente é um subterfúgio. Ao sobrepor o “conhecimento científico” ao dogma, as religiões terminam por atestar o próprio fracasso. A fé, por si, não opera o milagre da retificação do desejo, não é suficiente para garantir que o cristão consiga se conservar obediente às leis divinas. Assim, a ciência psicológica cristã, que prova que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade são doenças, vem em amparo às religiões, para confirmar a verdade da crença. Ao invés de o cristão confrontar somente com a força da fé o terrível desejo que atormenta sua alma, um caminho complementar e menos difícil de ser percorrido lhe é ofertado, o tratamento para a doença da qual padece e que é responsável por ele pecar. O desejo pecaminoso é o sintoma. As possíveis incompatibilidades entre o conhecimento científico e o dogma religioso são facilmente superadas porque não há, com efeito, nenhuma incompatibilidade. O conhecimento produzido pela psicologia cristã não passa de um pseudoconhecimento, um empreendimento que sempre confirma a crença, independentemente dos fatos empíricos.

Na audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, no Dia Internacional do Orgulho LGBT, 28 de junho, para discutir o Projeto de Decreto Legislativo n. 234/11, que susta a aplicação de dois dispositivos da Resolução n. 1/99 do CFP, a psicóloga cristã Marisa Lobo declarou: “A ciência ainda não tem entendimento do que é a homossexualidade. Não tem pesquisa que se comprove que a homossexualidade é genética”. Julgo que não devemos nos preocupar em demonstrar que a ciência logrou produzir um entendimento do que seja a homossexualidade. Essa empresa apenas nos mantém aprisionados no círculo dos pressupostos equivocados que informam a psicologia cristã. Os desejos homo e bieróticos não precisam ser entendidos, tampouco o travestismo e a transexualidade. A convicção de que essas subjetivações e experiências demandam uma explicação (científica) pressupõe, fatalmente, que a heterossexualidade e a cisgeneridade corporifiquem subjetivações e experiências naturais, normais, que carecem de ser explicadas, em relação às quais todas as demais, conquanto possam não ser classificadas como doenças, transtornos, distúrbios ou perversões, consistem em afastamentos, desvios, excecionalidades. Se é necessário compreender a homo e a bissexualidades, o travestismo e a transexualidade, então é forçoso compreender também a heterossexualidade e a cisgeneridade.

Nas palavras de Marisa Lobo, interessa apreender, antes de tudo, o significado do não enunciado, que desautoriza sua própria enunciação: “A ciência ainda não tem entendimento do que é a homossexualidade”. Poderíamos nos limitar a observar, ironicamente, que a ciência não tem entendimento, mas a célebre psicóloga cristã e seus parceiros no crime pares não têm nenhuma dúvida. Podemos avançar, porém. Embora a psicologia cristã não seja reconhecida por nenhuma vertente da psicologia, tampouco por outras áreas das humanidades ou pela medicina, seus adeptos afirmam com veemência que aquilo que fazem é ciência.2 Por conseguinte, para Marisa Lobo, seu pensar e seu fazer são científicos, estão de fato e de direito no campo da ciência. Se a ciência não tem entendimento do que seja a homossexualidade, então a tese da psicóloga cristã, que se pretende científica, também não pode ser considerada um entendimento, não sendo mais verossímil e confiável do que as demais existentes – as quais, contudo, em conjunto ofereceriam, ao menos, a segurança de entendimento conferida pela superioridade numérica, a segurança de um consenso mínimo. Imaginemos uma situação onde nenhuma vertente de uma ciência produz um entendimento acerca de uma questão, o que equivale à própria área não produzir um entendimento. Se uma das vertentes atesta que um fenômeno é uma doença, enquanto as outras nove sustentam o contrário, é dispensável possuir conhecimento científico especializado, somente bom senso, para decidir qual, dentre as dez, provavelmente é a menos verossímil e confiável. Inconscientemente, ao tentar conferir à sua tese legitimidade – tratava-se não de uma discussão científica, mas de uma discussão exclusivamente política – e potencial de convencimento, a psicóloga a refutou, nos seus próprios termos.

A psicologia cristã e os congressistas cristãos fundamentalistas contestam a autoridade institucional do CFP, condenando o arbítrio e o autoritarismo da Resolução n. 1/99, que exorbitou do poder regulamentar da entidade administrativa (Lei n. 5.766/71, Art. 1º, Art. 6º, b, c, d, e). Consequentemente, surge para o Congresso Nacional o encargo de sustar os dispositivos inconstitucionais (Art. 3º-4º) do ato normativo, em obediência à Constituição Federal (CF, Art. 49, V). Na justificativa do PDC n. 234/11, o deputado federal João Campos (PSDB-GO) argumenta que o CFP extrapolou seu poder regulamentar, estabelecendo obrigações e restringido direitos – o direito do psicólogo de trabalhar e o direito de todo indivíduo de receber orientação profissional –, mediante um ato administrativo. A autarquia usurpou portanto a competência do Poder Legislativo, “com graves implicações no plano jurídico-constitucional”, ao ilegitimamente inovar a ordem jurídica, em desrespeito ao princípio que consigna que apenas a lei formal pode criar direitos e impor obrigações, positivas ou negativas (CF, Art. 5º, II).

Seria certamente muito proveitosos os resultados de uma pesquisa que se dispusesse a inventariar quantos projetos de decreto legislativo foram apresentados, desde a promulgação da Constituição de 1988, com o objetivo de sustar resoluções que teriam restringido “o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional”, expedidas por conselhos federais fiscalizadores de profissões regulamentadas. A iniciativa toda assume a forma de um simulacro de defesa de uma ordem jurídica gravemente ameaçada. Similarmente, contra o Projeto de Lei da Câmara n. 122/06, que criminaliza o preconceito e a discriminação de gênero e de orientação sexual, a forma assumida é a da defesa dos direitos à livre manifestação do pensamento (CF, Art. 5º, IV), à liberdade de atividade intelectual e de comunicação (CF, Art. 5º, IX) e à inviolabilidade da liberdade de crença (CF, Art. 5º, VI), implicitamente elevados ao status de direitos absolutos, em detrimento da hermenêutica constitucional.

A dificuldade enfrentada ao se tentar refutar uma crença é o fato de que tende a permanecer irrefutável, aos olhos de quem crê. Uma eventualidade, uma exceção, um argumento ad hoc sempre podem ser alegados para que se prove que a crença se conserva verdadeira. Em 1974, a Associação Americana de Psicologia (APA) retirou o homossexualismo da lista de doenças mentais do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, reclassificando-o como distúrbio de orientação sexual. Em 1980, o homossexualismo foi retirado em definitivo da obra.3 No Brasil, em 1985, em plena epidemia de AIDS e catorze anos antes do CFP, o Conselho Federal de Medicina (CFM) concluiu que o homossexualismo não é um desvio sexual. Em 1993, o homossexualismo foi excluído da relação de transtornos mentais e de comportamento da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS). A Carta sobre os Direitos em Matéria de Sexualidade e de Reprodução, da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), publicada em 1995 e adotada em versão reduzida pelo Ministério da Saúde, propõe que sejam reconhecidos como direitos sexuais e reprodutivos:

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Toda a pessoa é livre de poder desfrutar e de controlar a sua vida sexual e reprodutiva, no direito pelo respeito dos outros.

Toda a pessoa tem direito de não estar sujeita ao assédio sexual, ao medo, vergonha, culpa ou outros factores psicológicos que prejudiquem o seu relacionamento sexual ou resposta sexual.

Ninguém deve ser discriminado em relação à sua vida sexual e reprodutiva e no acesso aos cuidados de saúde.

Nenhuma pessoa deve ser discriminada, ou vítima de violência, nomeadamente no quadro da vida sexual e reprodutiva.

Todas as pessoas têm o direito de exprimir a sua orientação sexual, sempre respeitando o bem estar e o direito dos outros.

Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão relativa à sua vida sexual e reprodutiva.

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Em 2009, um relatório da APA, redigido por uma comissão especial, que revisou a literatura acadêmica acerca do tema disponível nos arquivos da entidade, concluiu que inexistem evidências de que a orientação sexual possa ser alterada por terapia.

Proposições como estas, não importando a competência e a reputação dos órgãos que as emitam, não são refutadas por meio de argumentação e demonstração científicas, muito embora a psicologia cristã reitere obstinadamente ser uma ciência, mas rechaçadas com a acusação de que são decisões políticas, anticientíficas portanto. Previamente a todo empenho para provar sua verossimilhança e confiabilidade, talvez pudéssemos reformular nossos pressupostos, asseverando que são, sim, discursos políticos – discurso políticos que auferem sua legitimidade e potencial de convencimento do conhecimento científico, competindo a quem os contesta refutar as teses em que se embasam. Possuem dois objetivos tais proposições. (1) Certificar que, durante muito tempo, prevaleceram teses falaciosas sobre sexualidade e gênero, as quais informaram as clínicas médica e psicológica, bem como políticas públicas, promovendo, direta ou indiretamente, discriminações, segregações, opressões e violências (físicas e psíquicas). Funcionam, pois, como (precárias) reparações simbólicas. (2) Estimular ações concretas que contribuam para a consecução de mudanças no mundo social, visando à erradicação ou, no mínimo, à profunda diminuição da homofobia, da transfobia e do sexismo. Essa dimensão política perpassa também todos os estudos que, tanto no campo das humanidades como no das exatas, se esforçam, em alguma medida, para contribuir para a despatologização da homo e da bissexualidades e da transgeneridade. Evidenciá-la e assumi-la possibilita denunciar mais eficazmente a crença religiosa e os interesses políticos espúrios que se dissimulam como conhecimento científico. Enquanto o CFP estabelece normas de atuação profissional, as religiões cristãs fundamentalistas e a psicologia cristã se dedicam à preservação e à instituição de normas que regulem os valores, os desejos, os afetos e os relacionamentos, ou seja, ao extermínio das alteridades e ao controle das formas de vida. Se meu discurso está situado em uma posição onde é atravessado por relações de poder, não sendo neutro, imparcial e desinteressado, o discurso do meu adversário político também está. Ao invés de mimetizarmos a tática dos nossos opositores – meu discurso é científico, seu discurso é político –, em um debate acusatório em que argumento e contra-argumento são idênticos, a assunção da dimensão política permite que a um discurso religioso que simula ser ciência contraponhamos um discurso político baseado no conhecimento científico.

A contestação recorrente à tese pseudocientífica de que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade são doenças consiste em argumentar, com vitimismo, que ninguém opta por sua orientação sexual e que ninguém escolhe ter uma subjetividade em desacordo com o sexo biológico. Destarte, não seria possível alterar aquilo que é uma determinação natural, pressupõe-se. Entretanto, Marisa Lobo não está errada quando afirma que não está cientificamente comprovado que a homossexualidade seja determinada pela herança genética. A sexualidade e o gênero de um indivíduo não são meras determinações de informações contidas nos genes, pelo simples motivo de que um indivíduo não é um código genético. As relações dos genes com a sexualidade e o gênero, quaisquer que sejam, não são o único fator relacional em atuação. O ser humano se torna um indivíduo em um processo de socialização em que adquire cultura. No longo passado da humanidade, a sexualidade e a generidade foram experiências culturalmente diversificadas, como o são também no presente. Experiências diversificadas tanto interculturalmente, como também intraculturalmente. O determinismo biológico permanece sem conseguir propor uma explicação satisfatória, capaz de conciliar a orientação sexual e o gênero determinados geneticamente com o fato da variedade de significações culturais existentes, no passado e no presente, para as práticas sexuais e as identidades de gênero.

Uma interpretação da sexualidade e da generidade humanas como fenômenos instáveis, fluidos, moventes não significa validar a tese da psicologia cristã, pelo contrário. A psicologia cristã não defende e jamais defendeu que seja possível mudar a orientação sexual e o gênero. Toda declaração sustentando que seja é falsa. Não ocorre efetivamente uma mudança – porque existe apenas uma orientação sexual –, mas tão-somente a cura de uma doença, a passagem de um estado mórbido para um estado saudável. Se a psicologia cristã acreditasse que é possível mudar tanto a sexualidade, de homo ou biorientada para heteorientada, como o gênero, de transgênero para cisgênero, seria obrigada a admitir que o reverso também é possível. Todavia, esta hipótese não é admissível, porque desmente a crença que fundamenta a prática pseudoterapêutica.

O abandono da ideia da sexualidade e do gênero como fenômenos estáveis e fixos, como determinações que condicionam o indivíduo do nascimento à morte, é um desdobramento da passagem de uma ideia de “liberdade como liberdade de ser o que se é” para uma ideia de “liberdade como liberdade de ser o que se quiser ser”. “A liberdade de ser o que se é” é a liberdade de ser aquilo que se determinou que se deve ser.

Não seria legítima a vontade de um indivíduo de modificar sua orientação sexual ou a vontade de um indivíduo de que sua subjetividade esteja em acordo com seu sexo biológico? Sim, indubitavelmente. Contudo, é necessário perguntar: por que alguém iria querer mudar sua orientação sexual ou iria querer que sua subjetividade estivesse em conformidade com seu sexo biológico? No Ocidente, todos os indivíduos somos submetidos a um processo de socialização que tem por finalidade transformar os corpos em homens heterossexuais e mulheres heterossexuais, processo que, no senso comum, é concebido como o conjunto das ações que constituem o aprendizado imprescindível das emoções, das representações, dos valores, dos interesses e das práticas consubstancialmente específicos de cada um dos dois gêneros, incluído o aprendizado fundamental, o da forma de manifestação natural do desejo, a orientação para o gênero oposto. Há um evidente paradoxo. Se o heteroerotismo é a disposição natural do desejo, não deveria ser indispensável que todo indivíduo fosse submetido, desde o nascimento, a um totalizante, rígido e, por vezes, violento processo de subjetivação desejante, pois o desejo pelo gênero oposto afloraria naturalmente, de uma maneira ou de outra, em determinado momento. Se todo indivíduo tem um sexo natural, ninguém deveria ser submetido, desde o nascimento, a um totalizante, rígido e, por vezes, violento processo de aprendizado da masculinidade ou da feminilidade, para que sua subjetividade esteja de acordo com o sexo que lhe foi destinado ao nascer, seu sexo biológico. Ninguém sofre porque seu desejo é homo ou bierótico, mas porque vive em uma sociedade heteronormativa e homofóbica. Ninguém sofre porque é travesti ou transexual, mas porque sua subjetividade está em desacordo com o sexo que a sociedade lhe determina compulsoriamente como sendo sua natureza biológica.

Na audiência pública na Câmara, o deputado João Campos aduziu a seguinte alegação para justificar o PDC n. 234/11: “Um dos princípios básicos da ética médica é a autonomia do paciente. É como se o Conselho Federal de Psicologia considerasse o homossexual um ser menor, incapaz de autodeterminação”. Nessa fala, entrecruzam-se os três principais argumentos falaciosos do cristianismo fundamentalista: a sobredeterminação do individual sobre o social, a vontade soberana do indivíduo e os direitos absolutos. O indivíduo não tem um passado, o imaginário não o constitui como um sujeito (possível), ao circunscrevê-lo em posições de um estrutura de relações sociais e de poder interdependentes, temporalmente construída e, portanto, contingente. O indivíduo existe externamente a todo o social. O sofrimento que experimenta não tem de nenhum modo ligação com a sociedade onde vive. É exclusivamente parte de sua constituição. Não é um sofrimento tornado factível culturalmente. A vontade desse indivíduo associal sem passado deve sempre prevalecer. Seu direito absoluto se impõe sobre todo dever de responsabilidade médica e psicológica, mesmo se o sofrimento que possa estar experimentando estiver prejudicando sua cognição e sua volição. A relação entre o médico ou o psicólogo e o paciente degenera-se em uma relação contratual pecuniária, onde o paciente tem o direito de tudo exigir do profissional de saúde, que não sofre nenhuma restrição ética no exercício de sua atividade.

O PDC n. 234/11 é somente um de uma série de projetos legislativos apresentados nos últimos anos que possuem em comum a característica de afrontar o princípio constitucional da laicidade do Estado e os direitos individuais. É um indício o fato de que tenha sido proposto doze anos após a edição da Resolução n. 1/99 do CFP, por um deputado membro da bancada evangélica. Em novembro de 2011, o Ministério Público Federal (MPF), pela Procuradoria da República do Rio de Janeiro, impetrou uma ação civil pública requerendo à Justiça Federal que declare a inconstitucionalidade dos artigos 3º e 4º da Resolução n. 1/99. Sabe-se que um dos procuradores que assinaram a ação é evangélico. Entre outras proposições legislativas que atentam contra a laicidade estatal e os direitos individuais, pode-se citar: PL n. 478/07, PDC n. 52/2011, PDC n. 224/2011, PDC n. 312/2011, PDC n. 325/2011, PL n. 377/2011, PL n. 1.190/2011, PEC n. 164/2012, PDC n. 566/2012. Todas integram o processo de recrudescimento do conservadorismo religioso na sociedade brasileira, que ultrapassa as fronteiras dos templos religiosos e dos lares católicos e evangélicos, ramificando-se pelas instituições estatais, de onde seus agentes travam uma guerra espiritual para assegurar a imposição dos seus valores a toda a população.

PS: A ineficácia das terapias de reversão da sexualidade e do gênero, constatada, por exemplo, pela APA, não refutaria a ideia da sexualidade e da generidade humanas como fenômenos instáveis, fluidos, moventes? Não. Impor a alguém uma orientação sexual e um gênero, como se faz em nossa sociedade, com ou sem terapia, é muito diferente de se garantir ao indivíduo a liberdade de explorar sua orientação sexual e os gêneros, se quiser, quando quiser e sempre que quiser.

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1 Em rigor, a sodomia não é um ato sexual envolvendo dois ou mais homens. A sodomia é o sexo anal, classificado como prática contra natura, porque não reprodutiva. Portanto, a sodomia é um pecado se praticado tanto em um intercurso sexual homoerótico, como em um intercurso sexual heteroerótico.

2 Nada existe de análogo à absurda psicologia cristã no âmbito das outras áreas das humanidades que também se interessam pelos temas gênero e sexualidade. Inexiste uma sociologia cristã (do gênero e da sexualidade), uma antropologia cristã (do gênero e da sexualidade), uma história cristã (do gênero e da sexualidade).

3 A transgeneridade, definida como transtorno de identidade de gênero, continuou sendo classificada como patologia pelo Manual da APA.

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(Escrevinhamento publicado originalmente, sob o mesmo título, no Amálgama, em 16 de julho de 2012.)

O espelho do passado e as memórias em conflito

5ª Blogagem Coletiva Desarquivando o Brasil

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“Eu fiz isso”, diz minha memória. “Eu não posso ter feito isso”, diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim – a memória cede.

Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.

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Faixa exibida por um avião, contratado pelo deputado federal
Jair Bolsonaro (PP-RJ), que circulou pelas praias da Zona Sul
e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no dia 31 de março

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Há uma dupla virtude nas efemérides promovidas por militares no aniversário de 48 anos do golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart e instaurou a ditadura que permaneceu no poder por 21 anos. (1) Ao celebrar o que valorizam como as excelências e as glórias de um regime político de exceção, os militares terminam por demonstrar, ao revés, os vícios constitutivos do autoritarismo, evidenciando, em contrapartida, as virtudes da democracia, que lhes garante o direito de expressar publicamente suas opiniões e de se reunir coletivamente para festejar uma data à qual conferem uma significação especial e para enaltecer uma época que evocam com nostalgia. (2) Ao comemorar o aniversário do golpe, os militares demonstram também, novamente ao revés, a inexistência de um consenso social, de uma (re)conciliação nacional, evidenciando a persistência de interpretações divergentes e incompatíveis sobre o passado, de lembranças antagônicas e em disputa, de um conflito de memórias.

As comemorações provocaram reações de justa indignação, como a manifestação de repúdio, ocorrida no dia 29 de março, no Centro do Rio de Janeiro, contra os festejos que ocorriam no interior do Clube Militar. Não obstante, nenhum motivo há para surpresa ou espanto. As críticas que, de uma perspectiva política ou ética, podem e devem ser empreendidas não elidem o fato de que as comemorações são coerentes, uma decorrência inevitável do imaginário, dos valores e das convicções de parcela dos membros das forças armadas brasileiras. De quem se compromete, fervorosa e sinceramente, a morrer por seu país e cujas crenças não são abaladas em face ao horror da guerra, tudo o que se pode esperar, caso a necessidade e a oportunidade se efetivem, é que, de fato, se sacrifique. Analogamente, o que podemos esperar de quem justifica um golpe de Estado contra um regime democrático e elogia os tempos de uma ditadura militar? Certamente, não a celebração do fim da ditadura e a instituição da nova democracia – salvo se, à honestidade, preferirmos a hipocrisia. Não nos iludamos: não são apenas militares – não são poucos, portanto – os nostálgicos da ditadura, tampouco aqueles que, no Estado democrático de direito, defendem, por vezes não com um silêncio sorridente, medidas e práticas de exceção. Nossa tradição autoritária não pertence ao passado.

Os militares e os civis que se posicionam contrariamente a toda investigação dos crimes cometidos durante o regime ditatorial se esforçam para promover um estado de amnésia coletiva. A recusa de se olhar o espelho do passado consiste, concomitantemente, em uma recusa de se encarar o próprio presente. A imagem de um (tempo) outro nos obriga a enfrentar as relações que se conservam entre o passado e o presente, as possíveis continuidades perturbadoras, bem como a representação que construímos do nosso próprio tempo. A metáfora do ajuste de contas com o passado me parece equivocada, porque transmite uma impressão de definitividade, como se uma narrativa, memorialística ou histórica, pudesse estabelecer, definitivamente, uma verdade unívoca, como se o passado não fosse ressignificado por sucessivos presentes. Na medida em que nos encontramos sob o domínio de um passado que não passa e vivenciamos um conflito de memórias, as contas que temos a acertar são com nós mesmos. Não somos a sociedade brasileira da década de 1960 a de 1980, mas também não somos uma sociedade completamente diferente. Na imagem que miramos no espelho, vemos o outro e vemos também nosso reflexo. Vemos e simultaneamente tentamos não ver os horrores que, como sociedade, fomos capazes de perpetrar.

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Charge de Angeli

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Investigar o passado, precisar acontecimentos, enterrar os mortos são tarefas que independem dos (imprescindíveis) processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes de terrorismo estatal, são tarefas que deveriam ter sido realizadas há muito tempo. Vergonhoso não é somente o passado, mas também este presente pusilânime. De tanto tentarmos esquecer, de tanto mentirmos para nós mesmos, corremos o risco de começarmos a acreditar nas falsas narrativas que construímos para não termos de suportar o peso opressivo do passado. A memória mutilada: sem lembranças, sem responsabilidades.

Os atos comemorativos de membros das forças armadas, saudados por parcela da sociedade civil, contribuem para a refutação da tese que eles próprios perseveram em defender. Não há nenhuma boa sociabilidade em perigo, nenhum conflito em vias de ser instaurado caso o passado comece a ser investigado e os criminosos sejam julgados. O conflito está, há muito, instaurado entre nós. Apenas nos falta descobrir que significação nossa memória logrará construir acerca do passado.

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Protesto em frente ao Clube Militar, no Rio de Janeiro,
contra a comemoração do 48º aniversário do Golpe de 64

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PS: esta é minha terceira participação na blogagem coletiva Desarquivando o Brasil. Os dois escrevinhamentos anteriores foram: “Necessidade de saber” e “A memória imobilizada”.