Primeira foto: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo mostram para policiais militares um homem ferido, talvez morto, estendido sobre o chão.
Segunda e terceira fotos: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto. Seu rosto, seu peito, sua barriga, seus braços, suas pernas estão ensaguentados.
Quarta foto: policiais militares carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto.
O local é a ladeira Saint-Romain, no ponto de seu entrecruzamento com a rua Sá Ferreira, em Copacabana. A data, 22 de abril de 2014, noite do protesto dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo contra o assassinato de Douglas Rafael da Silva Pereira, o dançarino DG. O corpo ensaguentado de DG foi encontrado em uma creche do Pavão Pavãozinho. Ele morreu devido a uma hemorragia interna decorrente de uma laceração pulmonar provocada por um objeto – uma bala? – que perfurou seu tórax. Seu corpo apresentava sinais de espancamento, de acordo com sua mãe. O homem ferido ou morto que aparece nas fotos era Edilson da Silva dos Santos, que chegou morto ao Hospital Miguel Couto, devido a um ferimento de bala na cabeça. Ele foi baleado durante o protesto.
Mudei-me para a cidade do Rio de Janeiro, ondo resido atualmente, há um ano. Inicialmente, morei em Copacabana, na rua Sá Ferreira. Todas as noites, há policiais militares a postos no ponto onde essa rua e a ladeira Saint-Romain se interceptam. Policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Diariamente, eu passava pelo entrecruzamento da rua Sá Ferreira e da ladeira Saint-Romain ou ao lado, andando pelo lado oposto da rua.
Em uma noite de junho de 2013, após voltar do trabalho, saí de casa para comprar pão em um dos supermercados próximos. Ao atravessar a ladeira Saint-Romain, vi um rapaz que a descia ser abordado pelos policiais de plantão. Aparentemente, ele, que trajava bermuda, camiseta e chinelos, cometera o gesto suspeito de tão-somente descer a ladeira. Preocupado com sua segurança, parei e decidi acompanhar a abordagem. O rapaz tinha sido obrigado a se posicionar contra um muro e estava prestes a sofrer um baculejo. Um dos policiais – que era negro, como a maioria dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo – percebeu minha presença e me chamou. Fui a seu encontro. Como o rapaz, eu também fui obrigado a me posicionar contra o muro e também sofri um baculejo. Em seguida, o policial que me abordara perguntou-me, em tom arrogante e irascível, se eu conhecia o rapaz e se estava com ele. Ele sabia que não. Em face de minhas respostas negativas a ambas as perguntas, o policial iniciou uma sessão de intimidação: se eu não conhecia o rapaz, se não estávamos juntos, por que eu estava olhando? Assustado, tentei manter a calma e argumentar que toda pessoa tem o direito de acompanhar uma ação policial. Minha resposta o irritou ainda mais. Ele negou que eu tivesse esse direito, perguntou-me se eu estava olhando para julgar a ele e a seu colega e afirmou que ninguém se prontificava a ajudá-los, mas todos queriam julgá-los. (Naqueles dias, os policiais, sobretudo os da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, deparavam-se, no decurso das jornadas de junho, com uma resistência popular inédita a suas ações arbitrárias e violentas, sentindo-se acuados.) A partir desse momento, mantive-me calado, pois percebi que não havia nenhuma possibilidade de um diálogo razoável com aquele policial que me negava o direito de acompanhar a atuação de dois servidores públicos (militares) em um espaço público.
O rapaz foi liberado. Eu fui liberado.
Sou um homem branco, de classe média, que morava em Copacabana – e fui tratado dessa forma por policiais da PMERJ, por ter cometido o crime de acompanhar uma abordagem policial. Quantas vezes DG e Edilson, assassinados provavelmente por policiais militares, não sofreram, antes de morrerem, um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais? DG e Edilson eram negros e favelados. Quantas vezes seus parentes, seus amigos, seus vizinhos não sofreram um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais?
O Pavão Pavãozinho e o Cantagalo são favelas classificadas como pacificadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, como uma comunidade pode ser considerada pacificada se está sob ocupação militar? Que gênero de paz é esse que apenas pode ser garantido pela intervenção contínua e ininterrupta de uma força militar policial – a qual, supostamente, deveria proteger os moradores da comunidade, mas os trata a todos como suspeitos, criminosos em potencial?
O que aconteceu comigo naquela noite evidencia um dos problemas estruturais das polícias brasileiras, não apenas da polícia militar: o fato de que os policiais – os quais, pois é sempre importante reiterar, são, todos eles, servidores públicos – se consideram acima das leis e da justiça. No Brasil, as polícias não estão a serviço da população, não existem e não atuam com a finalidade de servir a população, mas com o objetivo de assegurar a conservação da ordem pública. Para garantir a manutenção dessa ordem pública, os policiais – orientados por representações e valores racistas e classistas, ou seja, orientados, portanto, por um imaginário e uma moralidade estruturados contrariamente à dignidade humana, à democracia e aos direitos – reputam-se autorizados a utilizar todos os meios violentos disponíveis, seja contra os indivíduos que corporificam signos das representações dos personagens perigosos e essencialmente ameaçadores à ordem, seja contra os indivíduos que, embora não corporifiquem signos das representações de personagens perigosos, terminam, em decorrência de suas ações, por se revelar, da perspectiva policial, como ameaçadores à ordem. O rapaz que eu vi descer a ladeira Saint-Romain e ser revistado pelos policiais militares pacificadores era perigoso porque corporifica o personagem do favelado, constituindo uma ameaça essencial à ordem. Eu fui considerado perigoso porque cometi o crime de acompanhar uma ação policial. Meu ato de testemunhar era ameaçador porque consistia em uma tentativa de questionamento da legitimidade da revista policial em curso, a qual era obviamente arbitrária. Na medida em que as polícias não se orientam pelas leis e pela justiça, mas pelos imperativos do seu imaginário e da sua moralidade particulares, representam a ordem que devem preservar não como pública, comum a todos, mas como um objeto do qual são as proprietárias, o que autoriza os policiais a interpretarem qualquer ameaça a sua propriedade privada como uma ameaça a eles mesmos e às instituições às quais pertencem. Uma ameaça – imaginária ou real – à ordem é uma ameaça às polícias. Uma ameaça – imaginária ou real – às polícias é uma ameaça à ordem.
O que aconteceu comigo naquela noite foi horrível. Voltei para casa transtornado, sentindo-me agredido e impotente. Entretanto, foi somente um susto, nada mais, em comparação com as violências policiais que, todos os dias, vitimam os moradores do Pavão Pavãozinho e do Cantagalo, bem como toda a população negra ou pobre ou moradora de rua do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil.