Não me diga que o rapaz era louco

No início da década de 1980, em Paris, Gilles (Grégoire Leprince-Ringuet) é gravemente ferido em um atentado terrorista de um grupo revolucionário armênio contra o embaixador da Turquia na França. Durante sua convalescência no hospital, ele recebe a inesperada visita de um mulher desconhecida, Anouch (Ariane Ascaride), mãe de Aram (Syrus Shahidi), o jovem francês descendente de armênios, da mesma idade que ele, que detonou a bomba que afetara permanentemente o movimento das suas pernas. Conquanto tivesse recebido Anouch rispidamente, meses depois ele viaja para Marselha, após a ocorrência de um novo ataque terrorista dos rebeldes armênios, agora em Roma, no qual uma menina vira seu avô morrer. Antes do atentado que o vitimara, Gilles nunca ouvira falar do genocídio do povo armênio, perpetrado pelo estado turco durante a Primeira Guerra Mundial. A maneira que ele encontra para elaborar o trauma é estudar o passado da sociedade armênia e se instalar na casa dos pais de Aram, no próprio quarto de Aram, estabelecendo uma tensa relação com a família do jovem revolucionário desaparecido. Um dia, sua ex-noiva, Valérie (Lola Naymark), vai a seu encontro. Inconformada com a decisão de Gilles, ela se queixa a Anouch: “Não é assim que se vira uma página”, que replica: “Há páginas que jamais viramos”. Uma história de loucura (2015), de Robert Guédiguian, é uma narrativa não tanto sobre a impossibilidade de se virar determinadas páginas, mas, antes de tudo, sobre a importância de não se virá-las. A questão que se impõe aos personagens passa a ser: como ler as páginas que não conseguimos ou não devemos virar? Como interpretá-las, que significações lhes conferir? O movimento de Gilles se orienta em um sentido diametralmente oposto ao de Arsinée (Siro Fazlian), a idosa mãe de Anouch, que, na juventude, após ter sido estuprada por soldados turcos, imigrara para a França para se casar com o único homem que aceitara desposar uma mulher violada, um viúvo na meia-idade. Embora o casamento tivesse sido arranjado, os dois se amaram. Contudo, apesar de ter sido amada pelo marido e de amá-lo também, Arsinée jamais conseguiu ressignificar a página que lia e relia obsessivamente. No confronto com a diferença de um outro que vive no mesmo país que ele, mas que lhe era desconhecido, e no esforço de elaboração do seu trauma, Gilles compreende que precisa, ao contrário de Arsinée, que vivera atormentada pelo fantasma do genocídio, parar de odiar. Ele não pode – e não deve – virar a página, mas pode ressignificá-la. Aram, sobrevivendo clandestinamente no exílio, passa a compreender que as ações do grupo rebelde que integra não são movidas pelo sentimento de justiça, mas apenas pelo ódio e o desejo de vingança, em uma espiral de violência que aparenta não ter possibilidade de fim. Como Gilles, ele também compreende que precisa ressignificar o passado, que sua identidade armênia não pode ser construída exclusivamente sobre uma memória assombrada pela experiência de um genocídio do qual não é um sobrevivente; que, sem necessariamente esquecer o passado, é possível ser armênio de outras formas.

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uma-historia-de-loucura

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O espelho do passado e as memórias em conflito

5ª Blogagem Coletiva Desarquivando o Brasil

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“Eu fiz isso”, diz minha memória. “Eu não posso ter feito isso”, diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim – a memória cede.

Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.

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Faixa exibida por um avião, contratado pelo deputado federal
Jair Bolsonaro (PP-RJ), que circulou pelas praias da Zona Sul
e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no dia 31 de março

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Há uma dupla virtude nas efemérides promovidas por militares no aniversário de 48 anos do golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart e instaurou a ditadura que permaneceu no poder por 21 anos. (1) Ao celebrar o que valorizam como as excelências e as glórias de um regime político de exceção, os militares terminam por demonstrar, ao revés, os vícios constitutivos do autoritarismo, evidenciando, em contrapartida, as virtudes da democracia, que lhes garante o direito de expressar publicamente suas opiniões e de se reunir coletivamente para festejar uma data à qual conferem uma significação especial e para enaltecer uma época que evocam com nostalgia. (2) Ao comemorar o aniversário do golpe, os militares demonstram também, novamente ao revés, a inexistência de um consenso social, de uma (re)conciliação nacional, evidenciando a persistência de interpretações divergentes e incompatíveis sobre o passado, de lembranças antagônicas e em disputa, de um conflito de memórias.

As comemorações provocaram reações de justa indignação, como a manifestação de repúdio, ocorrida no dia 29 de março, no Centro do Rio de Janeiro, contra os festejos que ocorriam no interior do Clube Militar. Não obstante, nenhum motivo há para surpresa ou espanto. As críticas que, de uma perspectiva política ou ética, podem e devem ser empreendidas não elidem o fato de que as comemorações são coerentes, uma decorrência inevitável do imaginário, dos valores e das convicções de parcela dos membros das forças armadas brasileiras. De quem se compromete, fervorosa e sinceramente, a morrer por seu país e cujas crenças não são abaladas em face ao horror da guerra, tudo o que se pode esperar, caso a necessidade e a oportunidade se efetivem, é que, de fato, se sacrifique. Analogamente, o que podemos esperar de quem justifica um golpe de Estado contra um regime democrático e elogia os tempos de uma ditadura militar? Certamente, não a celebração do fim da ditadura e a instituição da nova democracia – salvo se, à honestidade, preferirmos a hipocrisia. Não nos iludamos: não são apenas militares – não são poucos, portanto – os nostálgicos da ditadura, tampouco aqueles que, no Estado democrático de direito, defendem, por vezes não com um silêncio sorridente, medidas e práticas de exceção. Nossa tradição autoritária não pertence ao passado.

Os militares e os civis que se posicionam contrariamente a toda investigação dos crimes cometidos durante o regime ditatorial se esforçam para promover um estado de amnésia coletiva. A recusa de se olhar o espelho do passado consiste, concomitantemente, em uma recusa de se encarar o próprio presente. A imagem de um (tempo) outro nos obriga a enfrentar as relações que se conservam entre o passado e o presente, as possíveis continuidades perturbadoras, bem como a representação que construímos do nosso próprio tempo. A metáfora do ajuste de contas com o passado me parece equivocada, porque transmite uma impressão de definitividade, como se uma narrativa, memorialística ou histórica, pudesse estabelecer, definitivamente, uma verdade unívoca, como se o passado não fosse ressignificado por sucessivos presentes. Na medida em que nos encontramos sob o domínio de um passado que não passa e vivenciamos um conflito de memórias, as contas que temos a acertar são com nós mesmos. Não somos a sociedade brasileira da década de 1960 a de 1980, mas também não somos uma sociedade completamente diferente. Na imagem que miramos no espelho, vemos o outro e vemos também nosso reflexo. Vemos e simultaneamente tentamos não ver os horrores que, como sociedade, fomos capazes de perpetrar.

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Charge de Angeli

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Investigar o passado, precisar acontecimentos, enterrar os mortos são tarefas que independem dos (imprescindíveis) processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes de terrorismo estatal, são tarefas que deveriam ter sido realizadas há muito tempo. Vergonhoso não é somente o passado, mas também este presente pusilânime. De tanto tentarmos esquecer, de tanto mentirmos para nós mesmos, corremos o risco de começarmos a acreditar nas falsas narrativas que construímos para não termos de suportar o peso opressivo do passado. A memória mutilada: sem lembranças, sem responsabilidades.

Os atos comemorativos de membros das forças armadas, saudados por parcela da sociedade civil, contribuem para a refutação da tese que eles próprios perseveram em defender. Não há nenhuma boa sociabilidade em perigo, nenhum conflito em vias de ser instaurado caso o passado comece a ser investigado e os criminosos sejam julgados. O conflito está, há muito, instaurado entre nós. Apenas nos falta descobrir que significação nossa memória logrará construir acerca do passado.

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Protesto em frente ao Clube Militar, no Rio de Janeiro,
contra a comemoração do 48º aniversário do Golpe de 64

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PS: esta é minha terceira participação na blogagem coletiva Desarquivando o Brasil. Os dois escrevinhamentos anteriores foram: “Necessidade de saber” e “A memória imobilizada”.

A memória imobilizada

4ª Blogagem Coletiva Desarquivando o Brasil –
pela Revisão da Lei da Anistia

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… um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo.

Roberto Bolaño, Amuleto.

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A contrapartida da crença de que é ingenuidade ou estupidez acreditar que seja possível transformar o mundo, de que tentar transformar o mundo seria um esforço vão, é a crença de que os acontecimentos traumáticos devem ser esquecidos. Ambas as crenças operam como instrumentos de colonização do tempo. A primeira se expande em direção ao futuro, negando todo devir possível. A segunda se expande em direção ao passado, negando toda possibilidade de uma narrativa alternativa em relação à hegemônica. A primeira crença visa a impedir a atividade de imaginação, a segunda, a instaurar o esquecimento. Condenam-nos à cegueira, à ignorância e ao silêncio.

Uma das características fundamentais da sociedade brasileira é a tendência à conciliação dos conflitos, à reconciliação, cuja necessidade de preservação confere legitimidade tanto à crença na importância do esquecimento, como à crença na inexorabilidade do futuro idêntico ao presente. Devemos esquecer para evitar conflitos, não devemos imaginar para evitar conflitos. O tempo é um rio de curso retilíneo, de águas cristalinas e rasas, que fluem suavemente.

Não é surpreendente, pois, que entre as finalidades da recentemente criada Comissão Nacional da Verdade esteja, juntamente com a efetivação do “direito à memória e à verdade histórica”, a promoção dareconciliação nacional”. Contudo, a contradição entre esse fato e minha argumentação é tão-somente aparente. A condição necessária para a existência da Comissão é justamente a garantia de que não poderá promover conflitos. Supondo um cenário de todo promissor e, portanto, improvável, em que a Comissão da Verdade consiga, a despeito do reduzido número de membros, da enorme quantidade de documentos a ser analisados, e do curto período de duração de suas atividades, “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988, supondo também que dentro de dois anos todos os documentos secretos do regime militar estejam disponíveis ao acesso do público, o que ocorreria? Com certeza, nossa compreensão acerca do período seria ampliada. Evidentemente, o conhecimento possui um valor imanente, que não é um valor reduzido mesmo se não possui aplicabilidade. Não obstante, a memória não pode tolerar lembranças do horror que reivindicam uma justiça que jamais é cumprida. O Estado brasileiro comente um duplo atentado à memória. Primeiro, institui, pela força da lei, o esquecimento. Posteriormente, permite o conhecimento, limitado – mas limitado não porque toda memória e toda narrativa histórica sejam lacunares, limitado por restrições estatais –, com o asseguramento da condição de que não possa ser utilizado a serviço da justiça. Da memória mutilada à memória imobilizada. Todavia, como a memória não se satisfaz apenas com o conhecimento do horror que não deve ser esquecido, exige – e continuará exigindo – que se realize a justiça também. A sociedade brasileira não precisa se reconciliar, precisa conhecer o passado e se entregar, sem receios, ao conflito.

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