Museu do amanhã, sintoma do presente

Inaugurado por Eduardo Paes em 17 de dezembro de 2015, o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, foi a joia da coroa de obras de requalificação da Região Portuária e de modernização da cidade durante o governo do ex-prefeito do Rio de Janeiro. Projetado pelo arquiteto e engenheiro espanhol Santiago Calatrava, o edifício reluz à distância. Contudo, quem se aproxima com atenção da imensa bromélia branca rapidamente começa a distinguir fissuras na modernidade do diáfano e portentoso museu.

Somente um ano após sua inauguração, o edifício apresenta sinais de uma prematura deterioração, corporificando-se, inintencionalmente, como um duplo signo. Um signo da incompletude da periférica modernidade brasileira, a qual, projetando-se em um amanhã que jamais é alcançado, necessita, a cada presente, ser reiniciada, mediante processos de modernização que nunca cumprem suas virtuosas promessas. Um signo do futuro de ruínas e decrepitude que provavelmente aguarda a humanidade e também os seres transumanos que habitam a Terra, à medida que progride a mudança climática e, consequentemente, recrudesce a degradação dos ecossistemas do planeta.

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Localizado às margens da Baía de Guanabara, cuja despoluição fora prometida como um dos legados dos Jogos Olímpicos de 2016, o Museu do Amanhã pretende oferecer ao visitante “uma narrativa sobre como poderemos viver e moldar os próximos cinquenta anos”, “para ampliar nosso conhecimento e transformar nosso modo de pensar e agir”.

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A Olimpíada terminou, durou duas breves semanas. Estamos em 2107, mas a Baía de Guanabara continua poluída. De acordo com a Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro, serão necessários vinte e cinco a trinta anos para ser concluída sua despoluição. O Museu do Amanhã, uma obra megalomaníaca construída em uma cidade com museus mal conservados e museus inativos, é um signo da nossa periférica modernidade incompleta, ou seja, da nossa colonialidade, a qual estrutura tanto nossas relações sociais e econômicas como nosso imaginário. A compulsão para construir obras megalomaníacas, que afirmem uma modernidade pela qual ansiamos mas nunca atingimos, não promove alterações na nossa estrutura socioeconômica, mas, ao contrário, a reproduz e a reforça, constituindo-se como um dos sintomas da nossa colonialidade. Em vez de agirmos para promover mudanças estruturais, como o saneamento básico para toda a população e a despoluição da Baía de Guanabara, escolhemos construir um museu para, supostamente, nos conscientizar da importância de ações que promovam mudanças estruturais.

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O Museu do Amanhã não é um instrumento de esclarecimento. Em uma época em que se tornou para nós mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo, ele é tão-somente um instrumento de apaziguamento das nossas más consciências. Seu compromisso é, antes de tudo, com o espetáculo, não com a compreensão, pelo espectador que o visita, de que, nas palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “para imaginar o não fim do mundo é preciso imaginar o fim do capitalismo”. Quem o visita pode dormir tranquilamente, sem se angustiar com preocupações pelo futuro ou com terríveis pesadelos, pois cumpriu sua obrigação, está conscientizado da “força de alcance planetário” da ação humana. O Museu do Amanhã consiste não apenas em um sintoma da compulsão da nossa colonialidade pela construção de obras megalomaníacas, mas também em um sintoma da incapacidade de as sociedades contemporâneas se articularem politicamente para destruir um modo de produção ecocida e etnocida, antes que ele destrua o planeta, tornando-o inabitável para a espécie humana e formas de vida transumanas.

Das bordas da Praça Mauá, próximo ao Museu do Amanhã, crianças e adolescentes se divertem brincando de mergulhar na água imunda da Baía de Guanabara. São moradores pobres dos bairros e das favelas da Região Portuária, para quem as praias da Zona Sul são distantes e de difícil acesso. O que a requalificação da região do porto significou para eles e suas famílias? Que benefícios lhes proporcionou? O que significa o museu para eles? Qual amanhã lhes aguarda, se sobreviverem e não forem exterminados na guerra civil que, há décadas, vitima as populações que sobrevivem nas áreas onde impera o estado de exceção no Rio de Janeiro?

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“Mad Max – estrada da fúria” ou A possibilidade de um mundo outro, fundado no feminino

Mad Max – estrada da fúria, de George Miller, representa um futuro distópico em um tempo próximo mas impreciso, tão ou mais terrífico do que nos filmes anteriores da série. Os personagens habitam um mundo conflagrado por uma catástrofe ecológica, quase completamente estéril e com pouquíssima água potável. Um mundo que corresponde, ecologicamente, àqueles dos piores cenários que se nos apresentam em decorrência do aquecimento global e das mudanças climáticas.

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Na economia da narrativa, a personagem interpretada por Charlize Theron (Imperatriz Furiosa) possui mais falas e aparece mais tempo nos planos do que o personagem de Tom Hardy (Max Rockatansky). Esse não é o xis da questão, contudo. Furiosa é uma personagem mais importante do que Max porque é ela quem inicia a ação, rebelando-se contra um regime totalitário, ao fingir partir em mais uma busca de suprimentos sob as ordens de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), ditador de um povoado denominado Cidadela, uma cidade-estado. Max é conduzido à ação por acaso, ou melhor, ele literalmente é jogado no meio da ação iniciada por Furiosa. Viajante solitário, Max fora sequestrado e se tornara um prisioneiro da Cidadela. Ele tentara fugir, mas foi recapturado. Como portador do tipo sanguíneo O negativo (doador universal), foi reduzido à condição de uma preciosa bolsa de sangue para os Garotos de Guerra, os soldados do exército da cidade-estado. Quando Immortan Joe parte em perseguição à Furiosa e às suas concubinas fugitivas, escravas sexuais, que ela transportava secretamente para fora do povoado em seu veículo, um dos Garotos de Guerra, Nux (Nicholas Hoult) une-se ao grupo dos perseguidores, a despeito de seu estado de saúde debilitado, levando consigo sua bolsa de sangue, Max, que, depois de conseguir se libertar, alia-se, inicialmente a contragosto, à Furiosa e às concubinas fugitivas.

O ato mais importante de Max na história é o momento em que ele oferece uma alternativa à Furiosa, convencendo-a de que, em vez de prosseguir a viagem por uma vasta terra desértica, sem nenhuma certeza de que seu grupo logrará encontrar um terreno fértil e seguro, eles devem, juntos, conquistar a Cidadela desprotegida e depor Immortan Joe.

Furiosa não é uma mulher que precise ser protegida, tampouco uma mulher à espera de um homem que a salve. Max e Furiosa são iguais. O afeto que se constrói entre ambos, no decurso dos dias de fuga e combate, é o afeto baseado no reconhecimento do outro como um igual – um igual em intelecto, força, habilidades e coragem. O diálogo entre Max e Furiosa quando ele tenta convencê-la a mudar seus planos não é um embate entre a racionalidade, valorada como masculina e superior, e a sensibilidade, valorada como feminina e inferior, mas uma conversação entre duas racionalidades e duas sensibilidades que ouvem e ponderam os argumentos do outro. A alternativa proposta por Max à Furiosa somente se apresenta a ele mesmo não quando reflete racionalmente sobre os acontecimentos recentes e as possibilidades de ação, mas quando é novamente atormentado pelos fantasmas do seu passado, que apelam a seu sentimento de culpa, convencendo-o, emocionalmente, a não abandonar o grupo das mulheres em fuga e continuar a colaborar com elas.

É Furiosa quem, com o auxílio de Max, assassina Immortan Joe. Ao matá-lo, ela não está simplesmente se vingando de todo o sofrimento que sua mãe e ela padeceram em suas mãos, mas, antes de tudo, promovendo a justiça, em nome de todos os oprimidos pelo seu governo totalitário. Não há nenhuma possibilidade de conciliação com Immortan Joe. Não há perdão a quem não acredita no perdão e na redenção e a quem não acredita que seus atos constituam crimes atrozes. Sobretudo, para destruir a estrutura do mundo da Cidadela e construir um mundo outro, é preciso destruir Immortan Joe.

Ao final da história, a narrativa contrapõe uma comunidade política fundada em princípios valorados como femininos a um governo fundado em princípios valorados como masculinos. Compete justamente à Furiosa, às mulheres de sua tribo, que ela reencontra no deserto, e às concubinas fugitivas o papel de liderarem a construção de um mundo outro. Não por acaso, é a população miserável, sedenta e imunda que vive ao rés do chão, na região mais pobre da Cidadela, quem primeiro aclama Furiosa e seu grupo, ao verem o cadáver do ditador. Em êxtase, os miseráveis despedaçam o corpo de Immortan Joe. Não por acaso, são as Crianças de Guerra mais novas – aquelas que são, literalmente, crianças e pré-adolescentes e que ainda não tinham tido seu imaginário completamente colonizado pelas representações totalitárias do regime de Immortan Joe – que acionam o elevador para que Furiosa e seu grupo ascendam ao topo da cidade-estado, onde estava localizada a sede do governante morto. Não por acaso, são as mulheres que viviam escravizadas para fornecerem leite materno a Immortan Joe e seu séquito que abrem as comportas de água potável para os miseráveis sedentos e imundos, deixando-a jorrar livremente. São os miseráveis, as crianças, as mulheres escravizadas – os oprimidos, aqueles cuja vida não tinha nenhum valor na comunidade governada totalitariamente por Immortan Joe – quem reconhecem em Furiosa e seu grupo as agentes capazes de liderarem-nos na instituição de um mundo outro, cuja comunidade política seja fundada em princípios políticos valorados como femininos, em detrimento dos princípios políticos valorados como masculinos, os quais tinham sido o fundamento do regime anterior, que, em vez de promover a utilização não-predatória e a distribuição igualitária dos parcos recursos naturais, conservara-os escassos para assegurar a dominação sobre o povo, estabelecendo um estado de exceção contínuo. 

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Mad Max 2

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Quem tem medo dos índios?

A necessidade de proteção contra a violência dos povos indígenas, fantasma terrífico que assombra atualmente os sonhos desenvolvimentistas do agronegócio e do setor hidrelétrico brasileiros, não é uma constante universal, uma necessidade atemporal, como argumenta, falaciosamente, a retórica do progresso. Não existe, de fato. Existiram e existem tão-somente experiências de necessidade de proteção contra atos de violência praticados por povos indígenas, atos de violência que se constituíram, espacial e temporalmente, como reações, no decurso de empreendimentos de colonização, na América Portuguesa, e no decurso de empreendimentos de colonização interna, que, iniciados após a formação do Estado brasileiro, permanecem sendo promovidos há quase duzentos anos.

A necessidade de proteção é um topos que se impõe na retórica do progresso em seguida à apropriação do território de um povo selvagem ou bárbaro por um povo civilizado. Conquistado o território, torna-se necessário protegê-lo contra as invasões bárbaras. A necessidade de proteção opera também como um topos justificador de novas conquistas, imprescindíveis à proteção efetiva do território apropriado mas ameaçado.

Os topoi que precedem ao da necessidade de proteção, com a função de justificar a conquista a ser empreendida, representam o território como (1) desabitado (sertão bruto) – independentemente de ser verdadeira a convicção na inexistência de vida humana ou de ser o território falsamente representado como desabitado –, (2) precariamente habitado ou (3) habitado por uma população inculta e primitiva, atrasada ou subdesenvolvida, cujo progresso o povo civilizado está obrigado a promover, elevando-a a um estágio civilizacional, mas não necessariamente ao seu, ao desprovê-la de sua alteridade, re(des)figurando-a como uma imagem, senão idêntica, ao menos assemelhável à sua.

O topos da necessidade de proteção contra a violência dos índios justificou a realização, no dia 7 de dezembro, do evento adequadamente denominado, da perspectiva da retórica do progresso, Leilão da Resistência, uma iniciativa dos produtores rurais de Mato Grosso do Sul, da qual participaram senadores, deputados federais e deputados estaduais, destinada à arrecadação de recursos financeiros para a promoção da segurança armada de fazendas sul-mato-grossenses contra invasões indígenas. Da perspectiva dos povos indígenas e dos não-índios que defendem os direitos indígenas, o evento deveria ter sido denominado Leilão do Extermínio.

O topos da inexistência de vida humana em um território – falacioso, no caso, pois na região vivem índios da etnia munduruku e comunidades tradicionaisfoi mobilizado, no dia 10 de dezembro, pelo jornalista Luis Nassif, para justificar a construção de uma usina-plataforma no rio Tapajós. De acordo com ele, “será a primeira vez que se construirá uma hidrelétrica em região não habitada”.

PS: é extremamente importante assinalar também o antropocentrismo em que se funda o discurso de Nassif. O fato de que a usina hidrelétrica seria construída em uma região desabitada é apresentado como suficiente para reduzir “os fatores de atrito com as entidades ambientais”: “[s]erá um empreendimento localizado em ponto bem específico e sem implicações ambientais”. Os impactos do projeto são medidos exclusivamente pela régua antropocêntrica. Como (supostamente) inexiste vida humana no território, não serão produzidos impactos sobre seres humanos: logo, não serão produzidos impactos sobre o meio ambiente. Não por acaso, o texto não se refere a implicações sobre a natureza, mas a implicações ambientais, ou seja, a implicações sobre o meio ambiente. O meio ambiente é a natureza que existe apenas em função do humano e que, portanto, pertence por direito somente ao humano, pois no meio, parte equidistante dos diversos pontos da periferia, no centro do ambiente, domina solitário o humano. O meio ambiente é a natureza onde as formas de vida não-humanas estão relegadas às periferias, destituídas de direitos.

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[Aldo V. Silva] Manifestação do Fórum Social de SorocabaManifestação do Fórum Social de Sorocaba, em Sorocaba, a 9 de novembro de 2012
(Foto de Aldo V. Silva)

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Sobre Marina Silva – nem com nem contra

Um amigo que votou em Marina Silva nas últimas eleições presidenciais me confessou que, a despeito da admiração, sente dificuldades para continuar apoiando-a. Tenho pensado muito nas palavras dele nos últimos dias, em decorrência do partido político criado por iniciativa da ex-ministra do Meio Ambiente dos governos Lula. A intensidade da atração exercida por Marina me parece ser tão intensa quanto a rejeição que provoca. Tive o privilégio, privilégio porque foi uma experiência bela, de ouvi-la falando publicamente, anos atrás, na época em que exercia seu primeiro mandato como congressista. Marina não era tão famosa no Brasil. Lembro-me de que a amiga que estava sentada a meu lado me perguntou quem era ela. Socioambientalista brasileira de renome mundial, natural do Acre, foi amiga e companheira de luta de Chico Mendes, atualmente é senadora pelo Partido dos Trabalhadores  – respondi. Era uma noite de 1999, no Museu da Imprensa Nacional, em Brasília. Nos anos que se seguiram, acompanhei com admiração sua atuação política, mas votei em Dilma Rousseff no primeiro turno das eleições presidenciais. Não me arrependo da minha escolha, simplesmente porque foi uma escolha que fiz com convicção. Contudo, a convicção não elude a possibilidade de mau julgamento, de equívoco. Não pretendo votar novamente em Dilma, para qualquer cargo eletivo. Teria preferido votar em Marina? Acho que Marina estaria, na condição de chefe do Poder Executivo Federal, exercendo uma atuação superior à de Dilma? Sou bacharel em história, não preciso que ninguém – didaticamente e, talvez, sarcasticamente – me explique que não posso asseverar o que teria acontecido se. Não me empenho em dispender meu tempo em exercícios vãos. No entanto, tenho a impressão de que estaria satisfeito com um governo de Marina, quando não demonstro satisfação nenhuma em relação ao governo de Dilma. Não tenho intenção de tentar expor meus motivos, tampouco de convencer alguém, simplesmente porque se trata tão-somente de uma impressão. Acredito que ao menos algumas importantes transformações socioeconômicas talvez pudéssemos estar vivenciando, transformações que, evidentemente, não vivenciamos e não vivenciaremos em nenhum governo de um presidente eleito pelo PT. A impressão nasce de um sentimento de empatia por, de uma identificação com, de uma confiança em Marina, que não pretende racionalizar. Por mais racionais que tentemos ser, subsiste um âmago de irracionalidade na ação política. Somos movidos também por um patos político. Sem paixão, jamais haverá revolução. Não pretendo votar novamente em Dilma e, provavelmente, não votarei em Marina caso ela torne a se candidatar à Presidência da República. Interessa-me sua agenda socioambiental, da qual decorreu, no decurso das últimas três décadas, uma relevante atuação nos combates socioambientais, iniciada quando, para muitos de nós, incluo-me neste nós, a questão ecológica se reduzia ao espetáculo midiático da preservação do mico-leão dourado. Tenho muitos amigos que votaram em Marina para presidenta – o amigo referido no início do escrevinhamento é apenas um deles. Tenho amigos que estão engajados no processo de construção do partido de Marina. São todos pessoas que admiro intelectualmente. Não consigo acompanhá-los, contudo. Se a agenda socioambiental de Marina me interessa, a influência de seus valores religiosos sobre suas ideias políticas, suas posições ou suas tentativas de não se posicionar em relação a questões como direitos femininos e direitos glbt’s, e parcela de suas alianças religiosas e políticas não me permitem partidarizar com Marina. Não obstante, conquanto Marina não exerça sobre mim atração, não exerce também rejeição. Ela merece minha atenção. Estou convencido de que suas ideias e propostas políticas socioambientais precisam ser discutidas. No cenário onde nos encontramos, um cenário que não está se abrindo, mas um cenário que está aberto há, no mínimo, um século, o problema que enfrentamos é a própria possibilidade da continuidade de existência da vida humana no planeta que nós, animais humanos, habitamos e estamos destruindo. Marina desempenha um papel importante nos combates socioambientais. Portanto, na questão socioambiental, prefiro estar ao lado de Marina, ainda que seu posicionamento possa não me parecer suficientemente radical, e não pretendo que minhas convicções nos campos das questões anticapitalista, feminista e queer me impeçam de escutar o que ela possa ter de relevante a dizer acerca de outras formas de vida e de relação com o mundo natural. Para mim, Marina, como afirma Eduardo Viveiros de Castro, faz as pessoas pensarem, ou, se se preferir, pode nos ajudar a pensar – e urge que pensemos.

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