Não me diga que o rapaz era louco

No início da década de 1980, em Paris, Gilles (Grégoire Leprince-Ringuet) é gravemente ferido em um atentado terrorista de um grupo revolucionário armênio contra o embaixador da Turquia na França. Durante sua convalescência no hospital, ele recebe a inesperada visita de um mulher desconhecida, Anouch (Ariane Ascaride), mãe de Aram (Syrus Shahidi), o jovem francês descendente de armênios, da mesma idade que ele, que detonou a bomba que afetara permanentemente o movimento das suas pernas. Conquanto tivesse recebido Anouch rispidamente, meses depois ele viaja para Marselha, após a ocorrência de um novo ataque terrorista dos rebeldes armênios, agora em Roma, no qual uma menina vira seu avô morrer. Antes do atentado que o vitimara, Gilles nunca ouvira falar do genocídio do povo armênio, perpetrado pelo estado turco durante a Primeira Guerra Mundial. A maneira que ele encontra para elaborar o trauma é estudar o passado da sociedade armênia e se instalar na casa dos pais de Aram, no próprio quarto de Aram, estabelecendo uma tensa relação com a família do jovem revolucionário desaparecido. Um dia, sua ex-noiva, Valérie (Lola Naymark), vai a seu encontro. Inconformada com a decisão de Gilles, ela se queixa a Anouch: “Não é assim que se vira uma página”, que replica: “Há páginas que jamais viramos”. Uma história de loucura (2015), de Robert Guédiguian, é uma narrativa não tanto sobre a impossibilidade de se virar determinadas páginas, mas, antes de tudo, sobre a importância de não se virá-las. A questão que se impõe aos personagens passa a ser: como ler as páginas que não conseguimos ou não devemos virar? Como interpretá-las, que significações lhes conferir? O movimento de Gilles se orienta em um sentido diametralmente oposto ao de Arsinée (Siro Fazlian), a idosa mãe de Anouch, que, na juventude, após ter sido estuprada por soldados turcos, imigrara para a França para se casar com o único homem que aceitara desposar uma mulher violada, um viúvo na meia-idade. Embora o casamento tivesse sido arranjado, os dois se amaram. Contudo, apesar de ter sido amada pelo marido e de amá-lo também, Arsinée jamais conseguiu ressignificar a página que lia e relia obsessivamente. No confronto com a diferença de um outro que vive no mesmo país que ele, mas que lhe era desconhecido, e no esforço de elaboração do seu trauma, Gilles compreende que precisa, ao contrário de Arsinée, que vivera atormentada pelo fantasma do genocídio, parar de odiar. Ele não pode – e não deve – virar a página, mas pode ressignificá-la. Aram, sobrevivendo clandestinamente no exílio, passa a compreender que as ações do grupo rebelde que integra não são movidas pelo sentimento de justiça, mas apenas pelo ódio e o desejo de vingança, em uma espiral de violência que aparenta não ter possibilidade de fim. Como Gilles, ele também compreende que precisa ressignificar o passado, que sua identidade armênia não pode ser construída exclusivamente sobre uma memória assombrada pela experiência de um genocídio do qual não é um sobrevivente; que, sem necessariamente esquecer o passado, é possível ser armênio de outras formas.

.

uma-historia-de-loucura

.

Um relato pessoal sobre a polícia pacificadora do Pavão Pavãozinho

Primeira foto: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo mostram para policiais militares um homem ferido, talvez morto, estendido sobre o chão.

.
.

Segunda e terceira fotos: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto. Seu rosto, seu peito, sua barriga, seus braços, suas pernas estão ensaguentados.

.
.

.
.

Quarta foto: policiais militares carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto.

.
.

O local é a ladeira Saint-Romain, no ponto de seu entrecruzamento com a rua Sá Ferreira, em Copacabana. A data, 22 de abril de 2014, noite do protesto dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo contra o assassinato de Douglas Rafael da Silva Pereira, o dançarino DG. O corpo ensaguentado de DG foi encontrado em uma creche do Pavão Pavãozinho. Ele morreu devido a uma hemorragia interna decorrente de uma laceração pulmonar provocada por um objeto – uma bala? – que perfurou seu tórax. Seu corpo apresentava sinais de espancamento, de acordo com sua mãe. O homem ferido ou morto que aparece nas fotos era Edilson da Silva dos Santos, que chegou morto ao Hospital Miguel Couto, devido a um ferimento de bala na cabeça. Ele foi baleado durante o protesto.

Mudei-me para a cidade do Rio de Janeiro, ondo resido atualmente, há um ano. Inicialmente, morei em Copacabana, na rua Sá Ferreira. Todas as noites, há policiais militares a postos no ponto onde essa rua e a ladeira Saint-Romain se interceptam. Policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Diariamente, eu passava pelo entrecruzamento da rua Sá Ferreira e da ladeira Saint-Romain ou ao lado, andando pelo lado oposto da rua.

Em uma noite de junho de 2013, após voltar do trabalho, saí de casa para comprar pão em um dos supermercados próximos. Ao atravessar a ladeira Saint-Romain, vi um rapaz que a descia ser abordado pelos policiais de plantão. Aparentemente, ele, que trajava bermuda, camiseta e chinelos, cometera o gesto suspeito de tão-somente descer a ladeira. Preocupado com sua segurança, parei e decidi acompanhar a abordagem. O rapaz tinha sido obrigado a se posicionar contra um muro e estava prestes a sofrer um baculejo. Um dos policiais – que era negro, como a maioria dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo – percebeu minha presença e me chamou. Fui a seu encontro. Como o rapaz, eu também fui obrigado a me posicionar contra o muro e também sofri um baculejo. Em seguida, o policial que me abordara perguntou-me, em tom arrogante e irascível, se eu conhecia o rapaz e se estava com ele. Ele sabia que não. Em face de minhas respostas negativas a ambas as perguntas, o policial iniciou uma sessão de intimidação: se eu não conhecia o rapaz, se não estávamos juntos, por que eu estava olhando? Assustado, tentei manter a calma e argumentar que toda pessoa tem o direito de acompanhar uma ação policial. Minha resposta o irritou ainda mais. Ele negou que eu tivesse esse direito, perguntou-me se eu estava olhando para julgar a ele e a seu colega e afirmou que ninguém se prontificava a ajudá-los, mas todos queriam julgá-los. (Naqueles dias, os policiais, sobretudo os da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, deparavam-se, no decurso das jornadas de junho, com uma resistência popular inédita a suas ações arbitrárias e violentas, sentindo-se acuados.) A partir desse momento, mantive-me calado, pois percebi que não havia nenhuma possibilidade de um diálogo razoável com aquele policial que me negava o direito de acompanhar a atuação de dois servidores públicos (militares) em um espaço público.

O rapaz foi liberado. Eu fui liberado.

Sou um homem branco, de classe média, que morava em Copacabana – e fui tratado dessa forma por policiais da PMERJ, por ter cometido o crime de acompanhar uma abordagem policial. Quantas vezes DG e Edilson, assassinados provavelmente por policiais militares, não sofreram, antes de morrerem, um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais? DG e Edilson eram negros e favelados. Quantas vezes seus parentes, seus amigos, seus vizinhos não sofreram um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais?

O Pavão Pavãozinho e o Cantagalo são favelas classificadas como pacificadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, como uma comunidade pode ser considerada pacificada se está sob ocupação militar? Que gênero de paz é esse que apenas pode ser garantido pela intervenção contínua e ininterrupta de uma força militar policial – a qual, supostamente, deveria proteger os moradores da comunidade, mas os trata a todos como suspeitos, criminosos em potencial?

O que aconteceu comigo naquela noite evidencia um dos problemas estruturais das polícias brasileiras, não apenas da polícia militar: o fato de que os policiais – os quais, pois é sempre importante reiterar, são, todos eles, servidores públicos – se consideram acima das leis e da justiça. No Brasil, as polícias não estão a serviço da população, não existem e não atuam com a finalidade de servir a população, mas com o objetivo de assegurar a conservação da ordem pública. Para garantir a manutenção dessa ordem pública, os policiais – orientados por representações e valores racistas e classistas, ou seja, orientados, portanto, por um imaginário e uma moralidade estruturados contrariamente à dignidade humana, à democracia e aos direitos – reputam-se autorizados a utilizar todos os meios violentos disponíveis, seja contra os indivíduos que corporificam signos das representações dos personagens perigosos e essencialmente ameaçadores à ordem, seja contra os indivíduos que, embora não corporifiquem signos das representações de personagens perigosos, terminam, em decorrência de suas ações, por se revelar, da perspectiva policial, como ameaçadores à ordem. O rapaz que eu vi descer a ladeira Saint-Romain e ser revistado pelos policiais militares pacificadores era perigoso porque corporifica o personagem do favelado, constituindo uma ameaça essencial à ordem. Eu fui considerado perigoso porque cometi o crime de acompanhar uma ação policial. Meu ato de testemunhar era ameaçador porque consistia em uma tentativa de questionamento da legitimidade da revista policial em curso, a qual era obviamente arbitrária. Na medida em que as polícias não se orientam pelas leis e pela justiça, mas pelos imperativos do seu imaginário e da sua moralidade particulares, representam a ordem que devem preservar não como pública, comum a todos, mas como um objeto do qual são as proprietárias, o que autoriza os policiais a interpretarem qualquer ameaça a sua propriedade privada como uma ameaça a eles mesmos e às instituições às quais pertencem. Uma ameaça – imaginária ou real – à ordem é uma ameaça às polícias. Uma ameaça – imaginária ou real – às polícias é uma ameaça à ordem.

O que aconteceu comigo naquela noite foi horrível. Voltei para casa transtornado, sentindo-me agredido e impotente. Entretanto, foi somente um susto, nada mais, em comparação com as violências policiais que, todos os dias, vitimam os moradores do Pavão Pavãozinho e do Cantagalo, bem como toda a população negra ou pobre ou moradora de rua do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil.

“A mulher arrastada” – corpos violentáveis e a naturalização da violência policial

Não estamos todos perplexos com a morte de Cláudia Silva Ferreira – mulher, negra, pobre, casada, mãe de quatro filhos, moradora do Morro da Congonha, em Madureira, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Hospital Naval Marcílio Dias e era responsável pela criação de quatro sobrinhos.

.

Claudia Silva Ferreira 01

.

Para a mídia corporativa, Cláudia Silva Ferreira não é uma mulher que foi assassinada, barbaramente assassinada, por policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, mas a mulher arrastada por policiais militares. Nos últimos dias, a retórica eufemística do jornalismo brasileiro, deliberadamente orientada a evitar todo estímulo à indignação coletiva contra a injusta ordem pública de cuja preservação a polícia militar é uma das principais responsáveis, atingiu o paroxismo. O significante ‘arrastado’ foi empregado não apenas como um adjetivo, mas também como um substantivo, como, por exemplo, em três manchetes do portal de notícias G1, das Organizações Globo: “Moradores fecham via após enterro de arrastada por carro da PM no Rio”, “‘Meu pai não vai conseguir cuidar de todos’, diz filho de arrastada por PMs”, “Arrastada por carro da PM do Rio foi morta por tiro, diz atestado de óbito”.

Muito provavelmente, o assassinato de Cláudia Silva Ferreira não teria sido noticiado ou teria sido noticiado sem destaques, como uma das muitas mortes que, todos os dias, ocorrem em confrontos com policiais militares nas cidades brasileiras, caso ela não tivesse sido arrastada por uma viatura policial. Seria reportado, se fosse, exclusivamente como um efeito colateral ou um excesso policial ou um erro. Uma baixa inocente e lamentável, mas inevitável, na guerra necessária contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Todos sabemos, a guerra é a única forma possível de se enfrentar o crime organizado e o tráfico de drogas. Não que a morte de Cláudia não esteja sendo noticiada dessa maneira, como um não-homicídio. Está. Afinal, na maioria das reportagens, ela não é a mulher assassinada ou, ao menos, a mulher morta por policiais militares, mas “A mulher arrastada” ou, tão-somente, “A arrastada”. O vídeo de Cláudia Silva Ferreira sendo arrastada por cerca de 350 metros, ao ser transportada a um hospital na caçamba de uma viatura da PMERJ, atraiu a atenção da mídia corporativa, convertendo seu assassinato em notícia, mas possibilitou também, convenientemente, que a comoção coletiva pudesse ser desviada do fato de ela ter sido assassinada para o fato de ter sido arrastada por policiais militares. Decerto, o arratamento de um indivíduo, em si, corporifica um ato bárbaro, consistindo em um fato demasiado grave. O problema é que Cláudia Silva Ferreira não foi apenas arrastada por policiais militares, mas também assassinada por policiais militares. Contudo, a mídia corporativa e o poder público têm silenciado o segundo fato.

Em face de atos de violência policial como o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, os arautos do bom senso exortam-nos a sermos cautelosos, alertando-nos para o perigo de não separarmos o joio do trigo, para o risco de jogarmos fora a criança com a água do banho: há bons policiais, não podemos esquecer.

A polícia militar brasileira é uma instituição que exige de seus membros a incorporação total de seu imaginário, de sua moralidade e de seu código de conduta. Os soldados devem incorporar as representações, os valores e os hábitos da instituição, sem jamais duvidar de sua necessidade e justeza, sem nunca questioná-los, mesmo se não estiverem inscritos em nenhuma lei do ordenamento jurídico. Os pontos situados fora da curva não são, para utilizar o vocabulário pessoalista que reduz problemas sociais a desvios de caráter, os maus policiais, mas os bons policiais. A estrutura da polícia militar está estruturada para produzir a figura do policial agressivo e que sistematicamente desrespeita os direitos. A polícia militar não é uma instituição que apresenta problemas, mas constitui, por si mesma, devido a sua estrutura, um problema social. Os três policiais militares que assassinaram Claudia Silva Ferreira, dois subtenentes e um sargento, estão envolvidos em sessenta e dois autos de resistência ou resistências seguidas de mortes, sendo responsáveis por sessenta e nove mortes. Somente um dos subtenentes está envolvido em cinquenta e sete autos de resistência, tendo assassinado sessenta e três pessoas!

A violência policial, que na sociedade brasileira adquiriu a dimensão de um hábito, passando a ser naturalizada e tacitamente justificada, motivo pelo qual não nos surpreende e não nos indigna, dirige-se, antes de tudo, contra os corpos que nossa cultura significa como passíveis de ser violentados: corpos índios, corpos negros, corpos pobres ou miseráveis, corpos femininos cisgêneros, corpos transgêneros, corpos não-heterossexuais. Não obstante, não são esses os únicos corpos que podem ser violentados pela polícia militar. Repete-se que, nas áreas nobres das cidades, os policiais militares não agem da mesma forma pela qual se conduzem nas favelas e nas periferias. Todavia, há dois equívocos nessa verdade autoevidente. (1) Aos corpos classificados pela cultura como passíveis de ser violentados está sempre sancionado dispensar uma atuação violenta, não importa o local onde estejam posicionados. (2) Embora a cultura opere uma clivagem entre corpos violentáveis e corpos não-violentáveis, a qual é reconhecida e seguida pela polícia militar, esta opera uma segunda clivagem, entre indivíduos ameaçadores à ordem e indivíduos não-ameaçadores. Em uma situação de conflito entre as duas clivagens, prevalece a segunda. Os corpos classificados como violentáveis compreendem justamente os indivíduos representados como ameaças naturais à ordem. Contudo, um indivíduo cujo corpo em princípio seja não-violentável pode tornar-se, ou melhor, pode terminar revelando-se um indivíduo ameaçador à ordem. Todo indivíduo que constitua uma ameaça à ordem pode ter seu corpo violentado, ainda que seu corpo não fosse classificado, anteriormente, como um corpo violentável.

Quem define quem são os indivíduos ameaçadores à ordem? A própria polícia militar. Essa foi a lição que parcela da população brasileira, branca e de classe média, aprendeu durante as revoltas de junho de 2013. Reitero o que escrevinhei à época. “As representações, os valores e os hábitos da polícia [militar] são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade”, na medida em que todo indivíduo pode terminar revelando-se uma ameaça à ordem, sendo reduzido a um corpo violentável. No decurso das revoltas do ano passado no Rio de Janeiro, um hospital público e uma organização não-governamental de assistência a crianças e adolescentes carentes soropositivos foram considerados locais que abrigavam indivíduos ameaçadores à ordem, sendo atacados com bombas de gás lacrimogêneo.

Lamentavelmente, talvez somente consigamos extinguir a polícia militar se e quando a parcela da população cujos corpos são, em princípio, não-violentáveis tornar-se, da perspectiva dos policiais militares, uma ameaça à ordem e objeto sistemático da violência institucionalizada.

.

Claudia Silva Ferreira 02

.

Quem tem medo dos índios?

A necessidade de proteção contra a violência dos povos indígenas, fantasma terrífico que assombra atualmente os sonhos desenvolvimentistas do agronegócio e do setor hidrelétrico brasileiros, não é uma constante universal, uma necessidade atemporal, como argumenta, falaciosamente, a retórica do progresso. Não existe, de fato. Existiram e existem tão-somente experiências de necessidade de proteção contra atos de violência praticados por povos indígenas, atos de violência que se constituíram, espacial e temporalmente, como reações, no decurso de empreendimentos de colonização, na América Portuguesa, e no decurso de empreendimentos de colonização interna, que, iniciados após a formação do Estado brasileiro, permanecem sendo promovidos há quase duzentos anos.

A necessidade de proteção é um topos que se impõe na retórica do progresso em seguida à apropriação do território de um povo selvagem ou bárbaro por um povo civilizado. Conquistado o território, torna-se necessário protegê-lo contra as invasões bárbaras. A necessidade de proteção opera também como um topos justificador de novas conquistas, imprescindíveis à proteção efetiva do território apropriado mas ameaçado.

Os topoi que precedem ao da necessidade de proteção, com a função de justificar a conquista a ser empreendida, representam o território como (1) desabitado (sertão bruto) – independentemente de ser verdadeira a convicção na inexistência de vida humana ou de ser o território falsamente representado como desabitado –, (2) precariamente habitado ou (3) habitado por uma população inculta e primitiva, atrasada ou subdesenvolvida, cujo progresso o povo civilizado está obrigado a promover, elevando-a a um estágio civilizacional, mas não necessariamente ao seu, ao desprovê-la de sua alteridade, re(des)figurando-a como uma imagem, senão idêntica, ao menos assemelhável à sua.

O topos da necessidade de proteção contra a violência dos índios justificou a realização, no dia 7 de dezembro, do evento adequadamente denominado, da perspectiva da retórica do progresso, Leilão da Resistência, uma iniciativa dos produtores rurais de Mato Grosso do Sul, da qual participaram senadores, deputados federais e deputados estaduais, destinada à arrecadação de recursos financeiros para a promoção da segurança armada de fazendas sul-mato-grossenses contra invasões indígenas. Da perspectiva dos povos indígenas e dos não-índios que defendem os direitos indígenas, o evento deveria ter sido denominado Leilão do Extermínio.

O topos da inexistência de vida humana em um território – falacioso, no caso, pois na região vivem índios da etnia munduruku e comunidades tradicionaisfoi mobilizado, no dia 10 de dezembro, pelo jornalista Luis Nassif, para justificar a construção de uma usina-plataforma no rio Tapajós. De acordo com ele, “será a primeira vez que se construirá uma hidrelétrica em região não habitada”.

PS: é extremamente importante assinalar também o antropocentrismo em que se funda o discurso de Nassif. O fato de que a usina hidrelétrica seria construída em uma região desabitada é apresentado como suficiente para reduzir “os fatores de atrito com as entidades ambientais”: “[s]erá um empreendimento localizado em ponto bem específico e sem implicações ambientais”. Os impactos do projeto são medidos exclusivamente pela régua antropocêntrica. Como (supostamente) inexiste vida humana no território, não serão produzidos impactos sobre seres humanos: logo, não serão produzidos impactos sobre o meio ambiente. Não por acaso, o texto não se refere a implicações sobre a natureza, mas a implicações ambientais, ou seja, a implicações sobre o meio ambiente. O meio ambiente é a natureza que existe apenas em função do humano e que, portanto, pertence por direito somente ao humano, pois no meio, parte equidistante dos diversos pontos da periferia, no centro do ambiente, domina solitário o humano. O meio ambiente é a natureza onde as formas de vida não-humanas estão relegadas às periferias, destituídas de direitos.

.

[Aldo V. Silva] Manifestação do Fórum Social de SorocabaManifestação do Fórum Social de Sorocaba, em Sorocaba, a 9 de novembro de 2012
(Foto de Aldo V. Silva)

.

Por quanto tempo continuaremos a achar que é normal sentirmos medo da polícia?

Os brasileiros aprendemos, muito cedo, a não confiar na polícia e a temer a polícia. Aprendemos, muito cedo, as formas pelas quais devemos nos comportar corretamente em presença de um policial. “Polícia”, “policial”: significantes que enunciamos cotidianamente significando, na maioria das vezes, não o conjunto dos órgãos policiais do Estado e todos os agentes policiais, mas com os significados de “polícia militar” e “policial militar”. Evidentemente, as polícias militares estaduais e do Distrito Federal, bem como as polícias civis e federais, possuem seus inimigos principais: o negro, o pobre, o miserável, sobretudo: o negro pobre ou miserável, elementos perigosos por natureza, cuja mera existência constitui uma ameaça à ordem que deve ser preservada.

A ordem: os órgãos policiais militares, que são “forças auxiliares e reserva do Exército” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 144, § 6º), não existem para salvaguardar os indivíduos, a sociedade, mas para garantir a preservação desta entidade abstrata, a ordem instituída pelo Estado e pelo capital, ou, na letra do texto constitucional, para realizar “a polícia ostensiva” e para preservar a “ordem pública” (Constituição, art. 144, § 5º).

Não obstante a polícia possua seus inimigos principais, que sofrem regularmente e mais intensamente a arbitrariedade e a violência policiais, o sentimento de não-confiança e de temor, o conhecimento das normas de comportamento não-escritas, tácitas, que o indivíduo deve obedecer quando em presença de um policial são um sentimento e um conhecimento compartilhados por toda a população. As representações, os valores e os hábitos da polícia são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade. Esse é o motivo pelo qual, todos nós, em maior ou menor grau, não confiamos na polícia, tememos a polícia e nos esforçamos para nos comportar corretamente em presença de um policial. Sabemos que a polícia não existe para nos salvaguardar, que, por qualquer motivo e a qualquer momento, todos podemos, ainda que alguns certamente com mais facilidade do que outros, ser considerados inimigos. Os terríveis acontecimentos que vem ocorrendo nas últimas semanas em diversas capitais – especialmente os que ocorreram ontem em São Paulo, quando a polícia atacou com extrema violência os manifestantes que participavam da passeata pela redução do preço da tarifa do transporte público, mas também jornalistas e muitos transeuntes que não participavam da manifestação – apresentam ao menos uma virtude: lembrar-nos de qual é a finalidade que fundamenta a existência da polícia militar e, consequentemente, nos recordar de que, para uma instituição em estado de guerra permanente, todos que não integram suas fileiras, os outros, são possíveis ameaças, possíveis inimigos que devem ser combatidos.

Por quanto tempo nós brasileiros continuaremos a achar que é normal sentirmos medo da polícia?

.

Violento é o Estado

O espelho do passado e as memórias em conflito

5ª Blogagem Coletiva Desarquivando o Brasil

.

“Eu fiz isso”, diz minha memória. “Eu não posso ter feito isso”, diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim – a memória cede.

Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.

.

Faixa exibida por um avião, contratado pelo deputado federal
Jair Bolsonaro (PP-RJ), que circulou pelas praias da Zona Sul
e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no dia 31 de março

.

Há uma dupla virtude nas efemérides promovidas por militares no aniversário de 48 anos do golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart e instaurou a ditadura que permaneceu no poder por 21 anos. (1) Ao celebrar o que valorizam como as excelências e as glórias de um regime político de exceção, os militares terminam por demonstrar, ao revés, os vícios constitutivos do autoritarismo, evidenciando, em contrapartida, as virtudes da democracia, que lhes garante o direito de expressar publicamente suas opiniões e de se reunir coletivamente para festejar uma data à qual conferem uma significação especial e para enaltecer uma época que evocam com nostalgia. (2) Ao comemorar o aniversário do golpe, os militares demonstram também, novamente ao revés, a inexistência de um consenso social, de uma (re)conciliação nacional, evidenciando a persistência de interpretações divergentes e incompatíveis sobre o passado, de lembranças antagônicas e em disputa, de um conflito de memórias.

As comemorações provocaram reações de justa indignação, como a manifestação de repúdio, ocorrida no dia 29 de março, no Centro do Rio de Janeiro, contra os festejos que ocorriam no interior do Clube Militar. Não obstante, nenhum motivo há para surpresa ou espanto. As críticas que, de uma perspectiva política ou ética, podem e devem ser empreendidas não elidem o fato de que as comemorações são coerentes, uma decorrência inevitável do imaginário, dos valores e das convicções de parcela dos membros das forças armadas brasileiras. De quem se compromete, fervorosa e sinceramente, a morrer por seu país e cujas crenças não são abaladas em face ao horror da guerra, tudo o que se pode esperar, caso a necessidade e a oportunidade se efetivem, é que, de fato, se sacrifique. Analogamente, o que podemos esperar de quem justifica um golpe de Estado contra um regime democrático e elogia os tempos de uma ditadura militar? Certamente, não a celebração do fim da ditadura e a instituição da nova democracia – salvo se, à honestidade, preferirmos a hipocrisia. Não nos iludamos: não são apenas militares – não são poucos, portanto – os nostálgicos da ditadura, tampouco aqueles que, no Estado democrático de direito, defendem, por vezes não com um silêncio sorridente, medidas e práticas de exceção. Nossa tradição autoritária não pertence ao passado.

Os militares e os civis que se posicionam contrariamente a toda investigação dos crimes cometidos durante o regime ditatorial se esforçam para promover um estado de amnésia coletiva. A recusa de se olhar o espelho do passado consiste, concomitantemente, em uma recusa de se encarar o próprio presente. A imagem de um (tempo) outro nos obriga a enfrentar as relações que se conservam entre o passado e o presente, as possíveis continuidades perturbadoras, bem como a representação que construímos do nosso próprio tempo. A metáfora do ajuste de contas com o passado me parece equivocada, porque transmite uma impressão de definitividade, como se uma narrativa, memorialística ou histórica, pudesse estabelecer, definitivamente, uma verdade unívoca, como se o passado não fosse ressignificado por sucessivos presentes. Na medida em que nos encontramos sob o domínio de um passado que não passa e vivenciamos um conflito de memórias, as contas que temos a acertar são com nós mesmos. Não somos a sociedade brasileira da década de 1960 a de 1980, mas também não somos uma sociedade completamente diferente. Na imagem que miramos no espelho, vemos o outro e vemos também nosso reflexo. Vemos e simultaneamente tentamos não ver os horrores que, como sociedade, fomos capazes de perpetrar.

.

Charge de Angeli

.

Investigar o passado, precisar acontecimentos, enterrar os mortos são tarefas que independem dos (imprescindíveis) processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes de terrorismo estatal, são tarefas que deveriam ter sido realizadas há muito tempo. Vergonhoso não é somente o passado, mas também este presente pusilânime. De tanto tentarmos esquecer, de tanto mentirmos para nós mesmos, corremos o risco de começarmos a acreditar nas falsas narrativas que construímos para não termos de suportar o peso opressivo do passado. A memória mutilada: sem lembranças, sem responsabilidades.

Os atos comemorativos de membros das forças armadas, saudados por parcela da sociedade civil, contribuem para a refutação da tese que eles próprios perseveram em defender. Não há nenhuma boa sociabilidade em perigo, nenhum conflito em vias de ser instaurado caso o passado comece a ser investigado e os criminosos sejam julgados. O conflito está, há muito, instaurado entre nós. Apenas nos falta descobrir que significação nossa memória logrará construir acerca do passado.

.

Protesto em frente ao Clube Militar, no Rio de Janeiro,
contra a comemoração do 48º aniversário do Golpe de 64

.

PS: esta é minha terceira participação na blogagem coletiva Desarquivando o Brasil. Os dois escrevinhamentos anteriores foram: “Necessidade de saber” e “A memória imobilizada”.

Ninguém é cidadão

A verdade, da ordem da epifania ou da ordem do horror, talvez se revele inequivocamente, com a potência de uma evidência impossível de ser negada, obliterada ou olvidada, naquelas situações em que o silêncio se impõe, em que nossa voz é reduzida ao silêncio, quando o tempo parece se interromper e, momentaneamente, experimentamos a sensação de que não conseguimos pensar, permanecendo atônitos.

.

.

.

O que deve falar uma servidora pública, uma representante do Estado, supostamente encarregada de garantir medidas protetivas e reparadoras aos moradores de uma favela que perderam seus lares e foram desabrigados por um incêndio? Há palavras que possam proporcionar algum reconforto? Ou o único reconforto possível, conquanto talvez parcial, pode advir somente de ações reparadoras promovidas pelo Estado?

Se palavras adequadas a ser ditas são difíceis de ser encontradas – supondo-se que possam ser encontradas palavras adequadas quando se está em face de pessoas terrivelmente desamparadas –, há, com certeza, palavras que não podem ser ditas, palavras que a sensibilidade, o bom senso e a civilidade determinam que sejam silenciadas.

Em um acontecimento que ocorreu na cidade de São Paulo, governada por Gilberto Kassab (PSD), não estamos simplesmente em presença de uma impressionante demonstração de insensibilidade, falta de bom senso, incivilidade. Estamos em presença de um instante em que o imaginário do poder é, inadvertidamente, evidenciado:

.

Pra morar nesta cidade, pra ser cidadão em São Paulo, que é a terceira maior cidade do mundo, tem que trabalhar, tem que ter um custo e tem que ter condição de pagar. É o preço que se paga pra morar numa cidade como essa. Neste terreno a gente pretende começar um processo de desapropriação.

.

Em rigor, nenhuma novidade, todos sabemos como “pretos, pobres e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. Contudo, não é todo dia que o poder nos possibilita vislumbrar sem máscaras ou disfarces seu imaginário: a cidadania não é uma condição política, mas uma condição econômica. Em um instante, é revelado o horror da verdade da violência constitutiva do imaginário do poder. Incêndios criminosos são recorrentes em favelas de São Paulo. O tratamento dispensado pelo Estado às vítimas é caracterizado pelo não reconhecimento de direitos ou por um reconhecimento precário. Os moradores da Favela do Coruja, tanto os que perderam seus lares como os que não foram vítimas do incêndio, bem como os moradores de todas as favelas de São Paulo, são aqueles que estão destituídos de tudo, de todos os direitos, aqueles que não têm lugar na sociedade capitalista tardia, para os quais o único lugar possível são as zonas periféricas, como as pequenas cidades, para onde a representante do Estado lhes aconselhou se mudarem, onde, de acordo com ela, poderiam aguentar. Entretanto, único lugar possível ilusório, possível apenas temporariamente, onde podem aguentar enquanto o capital não aprofunda seu domínio. Na sociedade brasileira contemporânea, testemunhamos o progresso do processo de colonização interna, pelo avanço do capital para regiões anteriormente não conquistadas ou parcialmente conquistadas. Testemunhamos também milhares de pessoas serem expulsas de seus lares para que se possa realizar os dois principais hiperespetáculos esportivo-mercantis mundiais. Como todas as vezes, desde o século 19, os que não têm direitos, que não tem lugar, presenciam suas formas de vida serem desestruturadas, seus mundos serem destruídos. Não há nenhuma reparação possível, ainda que o Estado oferecesse uma justa indenização.

Há uma virtude nas palavras da representante estatal, todavia. A virtude da verdade que desnuda o rei em praça pública e nos oferece a visão do horror: verdade que não pode, ao menos de imediato, ser negada, obliterada ou olvidada. Por um instante, a realidade se cinde. Ninguém que esteve em face da verdade pode se excusar alegando desconhecimento. A voracidade e a violência do capital não reconhecem limites, finitudes. A segurança que porventura possamos sentir é tão-somente uma ilusão. Ninguém está totalmente seguro. A segurança perdura apenas pelo tempo em que cada um de nós possui alguma utilidade para o sistema.

Toda pessoa tem direito à integridade física – mesmo uma criança

Por que uma pessoa ou um casal decide ter filhos? Ou, reformulando a pergunta: por que alguém decide se reproduzir?

No Ocidente, casar ou viver maritalmente e ter filhos são considerados hoje opções e não obrigações, muito embora a maioria das pessoas solteiras sintam constrangimento pela vida celibatária, a solidão persistindo como um signo de fracasso social, e julguem que precisam se casar ou encontrar um companheiro ou uma companheira, do contrário jamais experienciarão uma vida plena. A paternidade e a maternidade também deixaram de ser consideradas obrigações. Todavia, são opções e, concomitantemente, fatos naturais. Raramente alguém se faz as seguintes perguntas: por que eu quero ser pai? por que eu quero ser mãe? por eu desejo ter um filho? A vontade de ter filhos dispensa uma justificação racional, o desejo sendo justificado pelo próprio desejo. Prevalece não os interesses do filho a ser concebido ou em gestação – ou que se pretende adotar –, mas os do(s) adulto(s). Sendo a paternidade e a maternidade compreendidos como fatos naturais, homens e mulheres adultos não costumam se perguntar: tenho eu condições emocionais de ser um (bom) pai ou uma (boa) mãe? o que tenho eu a oferecer a uma criança?

O direito que assiste a um pai e a uma mãe de castigar fisicamente os filhos se assenta em um duplo fundamento. Primeiro. A criança é um outro em uma relação de dominação. Como a mulher, o negro, o índio, o homossexual, a criança se caracteriza por possuir um défice, que justifica que seja mantida dominada. Segundo. A criança é uma posse. Na maioria das famílias brasileiras, o pai e a mãe podem dispor livremente dos corpos infantis dos quais são possuidores. A criança não se constitui como sujeito, é constituída como um objeto. Consequentemente, não é detentora de direitos. Se o é, seu direito à integridade física pode ser excepcionado em situações em que o direito de um adulto não poderia sê-lo, ou seja, em situações que não se configuram como de legítima defesa.

Se se considera a criança não um objeto, um pertence, mas um indivíduo cuja alteridade deve ser reconhecida e respeitada, um sujeito portanto, não resta possibilidade de que os direitos do pai e da mãe possam se sobrepor aos direitos dos filhos. Torna-se irrelevante discutir se, em determinadas circunstâncias, uma palmada é ou não necessária, se uma palmada é ou não traumática. A criança é um sujeito e a integridade física do outro, salvo em legítima defesa, deve ser respeitada, incondicionalmente.

Aos pais que invocam o direito de bater nos filhos uma sugestão: experimentem o sadomasoquismo. Provavelmente encontrarão um adulto que gosta de se fantasiar de criança e de apanhar, em quem poderão bater consensualmente.

A memória imobilizada

4ª Blogagem Coletiva Desarquivando o Brasil –
pela Revisão da Lei da Anistia

.

… um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo.

Roberto Bolaño, Amuleto.

.

A contrapartida da crença de que é ingenuidade ou estupidez acreditar que seja possível transformar o mundo, de que tentar transformar o mundo seria um esforço vão, é a crença de que os acontecimentos traumáticos devem ser esquecidos. Ambas as crenças operam como instrumentos de colonização do tempo. A primeira se expande em direção ao futuro, negando todo devir possível. A segunda se expande em direção ao passado, negando toda possibilidade de uma narrativa alternativa em relação à hegemônica. A primeira crença visa a impedir a atividade de imaginação, a segunda, a instaurar o esquecimento. Condenam-nos à cegueira, à ignorância e ao silêncio.

Uma das características fundamentais da sociedade brasileira é a tendência à conciliação dos conflitos, à reconciliação, cuja necessidade de preservação confere legitimidade tanto à crença na importância do esquecimento, como à crença na inexorabilidade do futuro idêntico ao presente. Devemos esquecer para evitar conflitos, não devemos imaginar para evitar conflitos. O tempo é um rio de curso retilíneo, de águas cristalinas e rasas, que fluem suavemente.

Não é surpreendente, pois, que entre as finalidades da recentemente criada Comissão Nacional da Verdade esteja, juntamente com a efetivação do “direito à memória e à verdade histórica”, a promoção dareconciliação nacional”. Contudo, a contradição entre esse fato e minha argumentação é tão-somente aparente. A condição necessária para a existência da Comissão é justamente a garantia de que não poderá promover conflitos. Supondo um cenário de todo promissor e, portanto, improvável, em que a Comissão da Verdade consiga, a despeito do reduzido número de membros, da enorme quantidade de documentos a ser analisados, e do curto período de duração de suas atividades, “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988, supondo também que dentro de dois anos todos os documentos secretos do regime militar estejam disponíveis ao acesso do público, o que ocorreria? Com certeza, nossa compreensão acerca do período seria ampliada. Evidentemente, o conhecimento possui um valor imanente, que não é um valor reduzido mesmo se não possui aplicabilidade. Não obstante, a memória não pode tolerar lembranças do horror que reivindicam uma justiça que jamais é cumprida. O Estado brasileiro comente um duplo atentado à memória. Primeiro, institui, pela força da lei, o esquecimento. Posteriormente, permite o conhecimento, limitado – mas limitado não porque toda memória e toda narrativa histórica sejam lacunares, limitado por restrições estatais –, com o asseguramento da condição de que não possa ser utilizado a serviço da justiça. Da memória mutilada à memória imobilizada. Todavia, como a memória não se satisfaz apenas com o conhecimento do horror que não deve ser esquecido, exige – e continuará exigindo – que se realize a justiça também. A sociedade brasileira não precisa se reconciliar, precisa conhecer o passado e se entregar, sem receios, ao conflito.

.