Museu do amanhã, sintoma do presente

Inaugurado por Eduardo Paes em 17 de dezembro de 2015, o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, foi a joia da coroa de obras de requalificação da Região Portuária e de modernização da cidade durante o governo do ex-prefeito do Rio de Janeiro. Projetado pelo arquiteto e engenheiro espanhol Santiago Calatrava, o edifício reluz à distância. Contudo, quem se aproxima com atenção da imensa bromélia branca rapidamente começa a distinguir fissuras na modernidade do diáfano e portentoso museu.

Somente um ano após sua inauguração, o edifício apresenta sinais de uma prematura deterioração, corporificando-se, inintencionalmente, como um duplo signo. Um signo da incompletude da periférica modernidade brasileira, a qual, projetando-se em um amanhã que jamais é alcançado, necessita, a cada presente, ser reiniciada, mediante processos de modernização que nunca cumprem suas virtuosas promessas. Um signo do futuro de ruínas e decrepitude que provavelmente aguarda a humanidade e também os seres transumanos que habitam a Terra, à medida que progride a mudança climática e, consequentemente, recrudesce a degradação dos ecossistemas do planeta.

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Localizado às margens da Baía de Guanabara, cuja despoluição fora prometida como um dos legados dos Jogos Olímpicos de 2016, o Museu do Amanhã pretende oferecer ao visitante “uma narrativa sobre como poderemos viver e moldar os próximos cinquenta anos”, “para ampliar nosso conhecimento e transformar nosso modo de pensar e agir”.

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A Olimpíada terminou, durou duas breves semanas. Estamos em 2107, mas a Baía de Guanabara continua poluída. De acordo com a Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro, serão necessários vinte e cinco a trinta anos para ser concluída sua despoluição. O Museu do Amanhã, uma obra megalomaníaca construída em uma cidade com museus mal conservados e museus inativos, é um signo da nossa periférica modernidade incompleta, ou seja, da nossa colonialidade, a qual estrutura tanto nossas relações sociais e econômicas como nosso imaginário. A compulsão para construir obras megalomaníacas, que afirmem uma modernidade pela qual ansiamos mas nunca atingimos, não promove alterações na nossa estrutura socioeconômica, mas, ao contrário, a reproduz e a reforça, constituindo-se como um dos sintomas da nossa colonialidade. Em vez de agirmos para promover mudanças estruturais, como o saneamento básico para toda a população e a despoluição da Baía de Guanabara, escolhemos construir um museu para, supostamente, nos conscientizar da importância de ações que promovam mudanças estruturais.

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O Museu do Amanhã não é um instrumento de esclarecimento. Em uma época em que se tornou para nós mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo, ele é tão-somente um instrumento de apaziguamento das nossas más consciências. Seu compromisso é, antes de tudo, com o espetáculo, não com a compreensão, pelo espectador que o visita, de que, nas palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “para imaginar o não fim do mundo é preciso imaginar o fim do capitalismo”. Quem o visita pode dormir tranquilamente, sem se angustiar com preocupações pelo futuro ou com terríveis pesadelos, pois cumpriu sua obrigação, está conscientizado da “força de alcance planetário” da ação humana. O Museu do Amanhã consiste não apenas em um sintoma da compulsão da nossa colonialidade pela construção de obras megalomaníacas, mas também em um sintoma da incapacidade de as sociedades contemporâneas se articularem politicamente para destruir um modo de produção ecocida e etnocida, antes que ele destrua o planeta, tornando-o inabitável para a espécie humana e formas de vida transumanas.

Das bordas da Praça Mauá, próximo ao Museu do Amanhã, crianças e adolescentes se divertem brincando de mergulhar na água imunda da Baía de Guanabara. São moradores pobres dos bairros e das favelas da Região Portuária, para quem as praias da Zona Sul são distantes e de difícil acesso. O que a requalificação da região do porto significou para eles e suas famílias? Que benefícios lhes proporcionou? O que significa o museu para eles? Qual amanhã lhes aguarda, se sobreviverem e não forem exterminados na guerra civil que, há décadas, vitima as populações que sobrevivem nas áreas onde impera o estado de exceção no Rio de Janeiro?

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“Moonlight”

A narrativa fílmica clássica que relata uma história de vida representa o indivíduo como uno e a existência como destino. O indivíduo não se constitui jamais como sujeito, na medida em que não apresenta fissuras e as experiências não o transformam no decurso do tempo. Aquilo que o indivíduo é, ele sempre foi e sempre será, havendo uma correspondência total entre o eu do presente e o eu do passado, entre o eu do presente e o eu do futuro. Moonlight – sob a luz do luar (2016), de Barry Jenkins, se desvia dessa forma de narrativa, para relatar a história de vida de um indivíduo que não é uno, mas múltiplo, um indivíduo que se esforça para se constituir como sujeito. Estruturado como um tríptico, o filme relata três histórias que se sucedem no tempo, a de Little (Alex R. Hibbert), o menino, a de Chiron (Ashton Sanders), o adolescente, a de Black (Trevante Rhodes), o homem adulto. De uma existência a outra há continuidades, mas também interrupções, lacunas. Há identidades, mas também diferenças. Little se transforma em Chiron, que se transforma em Black, mas de um fase da vida a outra não há uma continuidade inexorável; uma unidade que se preserva, inelutável.

O elemento de identificação entre Little, Chiron e Black não é tanto o fato de serem os três o mesmo o indivíduo. Em certa medida, não o são. Chiron foi Little, mas não é Little. Black foi Chiron e foi Little, mas não é nem Chiron nem Little. O que os identifica, então? As existências fendidas e unidas pela carência de afeto, a solidão e o sentimento de deslocamento e não-pertencimento.

Na primeira cena do filme, Little, apavorado, corre desesperadamente de um grupo de garotos que tenta agredi-lo. Posteriormente, no decurso da narrativa, Little e também Chiron e Black serão representados continuamente em movimento, deslocando-se entre diversos lugares. O sentimento de não-pertencimento e o impulso de deslocamento à procura de um lugar onde possa encontrar afeto e possibilidade de assentamento conduzem o devir do personagem e sua tentativa de se constituir como sujeito.

O introspectivo Little cresce em Miami, sem pai, presenciando sua mãe (Naomie Harris) se drogar e sendo acolhido por um traficante, Juan (Mahershala Ali), que assume a função de figura paterna para o menino. O tímido, frágil e hesitante Chiron, órfão do homem que o acolhera como um filho, vive em Miami com sua mãe, que se tornara viciada em drogas, esforçando-se para se desvencilhar das perseguições e agressões de colegas de colégio. Seu sentimento de deslocamento e não-pertencimento é agravado pela consciência da sua diferença sexual, a qual, apenas intuída por Little, se tornara incontornável durante a adolescência. Black, que seguiu os passos de Juan, é um poderoso traficante de drogas em Atlanta, onde vive solitário, distante da mãe, ex-viciada, com quem mantém um relacionamento tenso, marcado por lembranças dolorosas do passado e por feridas difíceis de serem cicatrizadas.

Um telefonema de Kevin (André Holland), o amigo de infância de Little, o rapaz com quem Chiron descobriu o prazer sexual e a quem amou em uma praia sob a luz do luar, põe Black em movimento, compelindo-o a viajar para Miami. Atormentado por uma recordação, movido pelo desejo, ele viaja esperando reviver uma inefável noite ao luar, sem compreender que não é possível viver novamente o passado.

No diálogo final, Kevin, reconhecendo a distância que separa Black de Chiron, a diferença entre o homem que acabou de conhecer e o adolescente de quem se lembrava, pergunta: “Quem é você, cara? Quem é você agora, Chiron?”. “Eu sou eu. Não estou tentando ser nada, além disso” – Black responde. Ele foi Chiron, ele foi Little. Ele, Black, não é Chiron, o adolescente de quem Kevin se recorda; como também o homem Kevin em face de quem ele se encontra não é o adolescente Kevin, cuja lembrança ele tinha conservado em sua memória. Kevin desejava uma recordação, uma representação que existia na sua memória, e se deparou com um indivíduo que não correspondia à imagem construída pelo seu desejo. Nesse momento, Black compreende que, por mais intenso que seja a atração que sente pelo homem que se encontra à sua frente, não pode se conformar a corresponder ao desejo do outro, como condição para ser objeto de um afeto. Ele é não mais o adolescente com quem Kevin passara uma noite ao luar em uma praia. Contudo, após se afirmar como sujeito – “Eu sou eu” – e, em seguida, fazer uma confissão, o forte e confiante Black termina chorando no ombro de Kevin, revelando-se tão solitário e carente de afeto quanto Chiron e Little. O movimento se suspende, como fora suspenso quando Black era criança, no dia em que Juan levara Little à praia e o ensinara a boiar nas ondas do mar. Sentado à beira da cama, ao lado do antigo amigo, Black pode (re)pousar, relaxar e receber afeto.

No último plano, Little, sozinho na praia, à luz da lua cheia, olha para trás, em direção ao prédio onde estão Black e Kevin: o homem não olha para o passado, mas o menino olha para o presente, tentando vislumbrar a possibilidade que, naquele momento, se apresenta no caminho, a possibilidade de um lugar no mundo pela abertura ao outro, a possibilidade do amor.

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Não me diga que o rapaz era louco

No início da década de 1980, em Paris, Gilles (Grégoire Leprince-Ringuet) é gravemente ferido em um atentado terrorista de um grupo revolucionário armênio contra o embaixador da Turquia na França. Durante sua convalescência no hospital, ele recebe a inesperada visita de um mulher desconhecida, Anouch (Ariane Ascaride), mãe de Aram (Syrus Shahidi), o jovem francês descendente de armênios, da mesma idade que ele, que detonou a bomba que afetara permanentemente o movimento das suas pernas. Conquanto tivesse recebido Anouch rispidamente, meses depois ele viaja para Marselha, após a ocorrência de um novo ataque terrorista dos rebeldes armênios, agora em Roma, no qual uma menina vira seu avô morrer. Antes do atentado que o vitimara, Gilles nunca ouvira falar do genocídio do povo armênio, perpetrado pelo estado turco durante a Primeira Guerra Mundial. A maneira que ele encontra para elaborar o trauma é estudar o passado da sociedade armênia e se instalar na casa dos pais de Aram, no próprio quarto de Aram, estabelecendo uma tensa relação com a família do jovem revolucionário desaparecido. Um dia, sua ex-noiva, Valérie (Lola Naymark), vai a seu encontro. Inconformada com a decisão de Gilles, ela se queixa a Anouch: “Não é assim que se vira uma página”, que replica: “Há páginas que jamais viramos”. Uma história de loucura (2015), de Robert Guédiguian, é uma narrativa não tanto sobre a impossibilidade de se virar determinadas páginas, mas, antes de tudo, sobre a importância de não se virá-las. A questão que se impõe aos personagens passa a ser: como ler as páginas que não conseguimos ou não devemos virar? Como interpretá-las, que significações lhes conferir? O movimento de Gilles se orienta em um sentido diametralmente oposto ao de Arsinée (Siro Fazlian), a idosa mãe de Anouch, que, na juventude, após ter sido estuprada por soldados turcos, imigrara para a França para se casar com o único homem que aceitara desposar uma mulher violada, um viúvo na meia-idade. Embora o casamento tivesse sido arranjado, os dois se amaram. Contudo, apesar de ter sido amada pelo marido e de amá-lo também, Arsinée jamais conseguiu ressignificar a página que lia e relia obsessivamente. No confronto com a diferença de um outro que vive no mesmo país que ele, mas que lhe era desconhecido, e no esforço de elaboração do seu trauma, Gilles compreende que precisa, ao contrário de Arsinée, que vivera atormentada pelo fantasma do genocídio, parar de odiar. Ele não pode – e não deve – virar a página, mas pode ressignificá-la. Aram, sobrevivendo clandestinamente no exílio, passa a compreender que as ações do grupo rebelde que integra não são movidas pelo sentimento de justiça, mas apenas pelo ódio e o desejo de vingança, em uma espiral de violência que aparenta não ter possibilidade de fim. Como Gilles, ele também compreende que precisa ressignificar o passado, que sua identidade armênia não pode ser construída exclusivamente sobre uma memória assombrada pela experiência de um genocídio do qual não é um sobrevivente; que, sem necessariamente esquecer o passado, é possível ser armênio de outras formas.

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“Mad Max – estrada da fúria” ou A possibilidade de um mundo outro, fundado no feminino

Mad Max – estrada da fúria, de George Miller, representa um futuro distópico em um tempo próximo mas impreciso, tão ou mais terrífico do que nos filmes anteriores da série. Os personagens habitam um mundo conflagrado por uma catástrofe ecológica, quase completamente estéril e com pouquíssima água potável. Um mundo que corresponde, ecologicamente, àqueles dos piores cenários que se nos apresentam em decorrência do aquecimento global e das mudanças climáticas.

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Na economia da narrativa, a personagem interpretada por Charlize Theron (Imperatriz Furiosa) possui mais falas e aparece mais tempo nos planos do que o personagem de Tom Hardy (Max Rockatansky). Esse não é o xis da questão, contudo. Furiosa é uma personagem mais importante do que Max porque é ela quem inicia a ação, rebelando-se contra um regime totalitário, ao fingir partir em mais uma busca de suprimentos sob as ordens de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), ditador de um povoado denominado Cidadela, uma cidade-estado. Max é conduzido à ação por acaso, ou melhor, ele literalmente é jogado no meio da ação iniciada por Furiosa. Viajante solitário, Max fora sequestrado e se tornara um prisioneiro da Cidadela. Ele tentara fugir, mas foi recapturado. Como portador do tipo sanguíneo O negativo (doador universal), foi reduzido à condição de uma preciosa bolsa de sangue para os Garotos de Guerra, os soldados do exército da cidade-estado. Quando Immortan Joe parte em perseguição à Furiosa e às suas concubinas fugitivas, escravas sexuais, que ela transportava secretamente para fora do povoado em seu veículo, um dos Garotos de Guerra, Nux (Nicholas Hoult) une-se ao grupo dos perseguidores, a despeito de seu estado de saúde debilitado, levando consigo sua bolsa de sangue, Max, que, depois de conseguir se libertar, alia-se, inicialmente a contragosto, à Furiosa e às concubinas fugitivas.

O ato mais importante de Max na história é o momento em que ele oferece uma alternativa à Furiosa, convencendo-a de que, em vez de prosseguir a viagem por uma vasta terra desértica, sem nenhuma certeza de que seu grupo logrará encontrar um terreno fértil e seguro, eles devem, juntos, conquistar a Cidadela desprotegida e depor Immortan Joe.

Furiosa não é uma mulher que precise ser protegida, tampouco uma mulher à espera de um homem que a salve. Max e Furiosa são iguais. O afeto que se constrói entre ambos, no decurso dos dias de fuga e combate, é o afeto baseado no reconhecimento do outro como um igual – um igual em intelecto, força, habilidades e coragem. O diálogo entre Max e Furiosa quando ele tenta convencê-la a mudar seus planos não é um embate entre a racionalidade, valorada como masculina e superior, e a sensibilidade, valorada como feminina e inferior, mas uma conversação entre duas racionalidades e duas sensibilidades que ouvem e ponderam os argumentos do outro. A alternativa proposta por Max à Furiosa somente se apresenta a ele mesmo não quando reflete racionalmente sobre os acontecimentos recentes e as possibilidades de ação, mas quando é novamente atormentado pelos fantasmas do seu passado, que apelam a seu sentimento de culpa, convencendo-o, emocionalmente, a não abandonar o grupo das mulheres em fuga e continuar a colaborar com elas.

É Furiosa quem, com o auxílio de Max, assassina Immortan Joe. Ao matá-lo, ela não está simplesmente se vingando de todo o sofrimento que sua mãe e ela padeceram em suas mãos, mas, antes de tudo, promovendo a justiça, em nome de todos os oprimidos pelo seu governo totalitário. Não há nenhuma possibilidade de conciliação com Immortan Joe. Não há perdão a quem não acredita no perdão e na redenção e a quem não acredita que seus atos constituam crimes atrozes. Sobretudo, para destruir a estrutura do mundo da Cidadela e construir um mundo outro, é preciso destruir Immortan Joe.

Ao final da história, a narrativa contrapõe uma comunidade política fundada em princípios valorados como femininos a um governo fundado em princípios valorados como masculinos. Compete justamente à Furiosa, às mulheres de sua tribo, que ela reencontra no deserto, e às concubinas fugitivas o papel de liderarem a construção de um mundo outro. Não por acaso, é a população miserável, sedenta e imunda que vive ao rés do chão, na região mais pobre da Cidadela, quem primeiro aclama Furiosa e seu grupo, ao verem o cadáver do ditador. Em êxtase, os miseráveis despedaçam o corpo de Immortan Joe. Não por acaso, são as Crianças de Guerra mais novas – aquelas que são, literalmente, crianças e pré-adolescentes e que ainda não tinham tido seu imaginário completamente colonizado pelas representações totalitárias do regime de Immortan Joe – que acionam o elevador para que Furiosa e seu grupo ascendam ao topo da cidade-estado, onde estava localizada a sede do governante morto. Não por acaso, são as mulheres que viviam escravizadas para fornecerem leite materno a Immortan Joe e seu séquito que abrem as comportas de água potável para os miseráveis sedentos e imundos, deixando-a jorrar livremente. São os miseráveis, as crianças, as mulheres escravizadas – os oprimidos, aqueles cuja vida não tinha nenhum valor na comunidade governada totalitariamente por Immortan Joe – quem reconhecem em Furiosa e seu grupo as agentes capazes de liderarem-nos na instituição de um mundo outro, cuja comunidade política seja fundada em princípios políticos valorados como femininos, em detrimento dos princípios políticos valorados como masculinos, os quais tinham sido o fundamento do regime anterior, que, em vez de promover a utilização não-predatória e a distribuição igualitária dos parcos recursos naturais, conservara-os escassos para assegurar a dominação sobre o povo, estabelecendo um estado de exceção contínuo. 

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Impasses da veadagem ou “Miga, pare que tá feio!”

Eu me identifico como homem (cisgênero) gay. Contudo, ultimamente, venho me perguntando: o que é ser gay? Uma resposta a essa pergunta talvez pudesse ser satisfatoriamente oferecida por uma negativa: um homem gay é um homem que não sente atração por mulheres. O problema é que existem homens que não sentem atração por mulheres, e não se identificam como homens gays.

Desde o final da adolescência e o início da vida adulta, eu me identifico como gay. Não obstante, passados cerca de vinte anos desde a primeira vez que verbalizei para alguém “Eu sou gay”, percebo que, hoje, o significado de ser gay, para mim, às vésperas dos quarenta anos, não é o mesmo de ontem, tanto porque culturalmente a experiência homoafetiva masculina e o significado de ser gay não permaneceram estáveis, como porque minhas experiências pessoais transformaram minha compreensão da identidade gay, assim como minha representação do meu eu.

Quando me assumi gay, o próprio conceito de identidade era desconhecido para mim. Ser gay me parecia, antes de tudo, uma condição, um estado natural do meu ser, não uma identidade que assumia conscientemente. Com o decorrer do tempo, essa compreensão do significado de ser gay e minha representação do meu eu se modificaram, devido ao entendimento que construí acerca da assimetria entre a orientação sexual, ou seja, o desejo, e a identidade cultural. O fato de o desejo de um homem (cisgênero ou transexual) ser homo-orientado ou andro-orientado não significa, necessariamente, que esse homem seja gay. Ser gay é uma identidade construída culturalmente – construída em relação a um desejo desviante da heteroafetividade instituída como norma social.

Ser gay é uma forma pela qual um homem se posiciona socialmente – mas também, ou sobretudo, politicamente, muito embora possa não estar consciente da dimensão política do seu ato – em relação a seu desejo, desviante da normatividade heteroafetiva, construindo para si mesmo e para os outros uma representação identitária não-heterossexual. Se a experiência de um desejo homo-orientado ou andro-orientado não é condição suficiente para que um homem seja gay, o fato de um homem se identificar socialmente como gay é condição necessária para que seu desejo seja homo-orientado ou andro-orientado? Em outras palavras, é possível que um homem se identifique como gay, conquanto seu desejo seja hetero-orientado ou gino-orientado? Na prática, não há nada que impeça um homem cujo desejo seja hetero-orientado ou gino-orientado de se identificar socialmente como gay. Entretanto, são raros, não ouso afirmar que inexistentes, os casos – como se fosse ilógico que um homem cujo desejo seja hetero-orientado ou gino-orientado se identifique socialmente como gay. Portanto, a identidade masculina gay parece conservar um núcleo, sem o qual estaria destituída de significação. Essa identidade seria um devir constituído ou, em um vocabulário não-determinista, um devir continuamente atravessado por um desejo homo-orientado ou andro-orientado. Aparentemente, na ausência desse desejo constitutivo ou atravessante, inexistiria uma identidade gay.

Os perigos começam quando se tenta ultrapassar esse núcleo que conferiria uma estabilidade de significação à identidade gay, para se tentar determinar como deve se comportar um homem gay, isto é, quando se tenta estabelecer a maneira correta pela qual um homem deve ser gay. De caráter conservador e moralista, os apelos nesse sentido partem tanto do exterior como do próprio interior da comunidade gay.

Os apelos do exterior são motivados por um medo de que a ordem social esteja ameaçada pelas transformações que, no decurso das últimas décadas, desestabilizaram as normas de gênero e de sexualidade vigentes. Se não é possível negar a existência do homem gay, torna-se imprescindível regular esse fato, mediante mecanismos de controle social que assegurem a boa convivência entre a população (cisgênera) heterossexual e os homens gays. “Você pode ser gay, mas não precisa demonstrar que é gay.” Os apelos do exterior visam, pela colonização da identidade gay, a garantir a manutenção da ordem social hetenormativa e a permanência do privilégio heterossexual, com a consequente continuidade da discriminação e da opressão exercidas contra os homossexuais.

Os apelos do interior são motivados tanto pela decisão do homem gay de se distanciar das representações dominantes da homossexualidade masculina no imaginário social, bem como pelo empenho em ser aceito socialmente, deslocando-se da posição de marginalidade para ocupar uma posição no centro da organização social. Evidentemente, para que a aceitação social possa ser obtida, torna-se indispensável que o homem gay construa no espaço público uma representação do eu contrária às representações dominantes da homossexualidade masculina, cujas características definidoras são a feminilidade, a fragilidade, a futilidade, a libido incontrolável e a promiscuidade.

A identidade masculina gay, como toda identidade cultural, não é homogênea, unívoca. Se possui um núcleo constitutivo ou atravessante, para além desse núcleo é heterogênea, múltipla e, inclusive, potencialmente contraditória. O grave equívoco cometido por uma parcela da comunidade gay consiste na operação que vem realizando para tentar dotar de homogeneidade e estabilidade os signos que existem exteriormente ao núcleo, eliminando, no processo, todos os signos considerados culturalmente inadequados, inaceitáveis. No processo, tenta-se promover tanto a dissolução de diferenças entre homens heterossexuais e homens homossexuais, pela conformação da identidade gay à normatividade heteroafetiva, mas também a extinção de parte da diferença interna à própria comunidade gay. Não há consenso absoluto sobre os signos que devem ser conservados e os que devem ser suprimidos, mas a operação pode ser apropriadamente caracterizada como um esforço conservador e moralista, antilibertário.

Sendo a identidade masculina gay um devir, as possibilidades da sua experienciação são diversas – e, decerto, ainda existem muitas a serem imaginadas e construídas. Ademais, nada assegura que a identidade gay persistirá para sempre. É possível que, no futuro, não haja sentido em se relacionar o desejo masculino homo-orientado ou andro-orientado à identidade gay, a qual, como toda identidade cultural, por existir no tempo, possui uma gênese, transforma-se e pode, inclusive, desaparecer. Todavia, seu fim não conduziria a um consequente desaparecimento do desejo masculino homo-orientado ou andro-orientado, tampouco seria determinado pela dissolução deste. Embora se possa pressupor, verossimilmente, que o desejo masculino homo-orientado ou andro-orientado seja transversal, não é possível concluir que a identidade gay seja universal. Como toda identidade cultural, ela é localizada.

Nenhum homem gay precisa se sentir constrangido a corresponder às representações dominantes da homossexualidade masculina. Há muitas maneiras pelas quais um homem pode ser gay. Contudo, consiste em um problema social o fato de que muitos homens confundam a vontade legítima que possam sentir de construírem para si uma identidade gay destoante das representações dominantes da homossexualidade masculina com a pretensão ilegítima de instituir uma determinada representação da identidade gay como modelo de valores e comportamento, discriminando e oprimindo quem, sendo homossexual, com ela não se identifique.

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Chris Colfer

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“Ao farol” – uma citação, duas traduções

“Você não acabará essa meia esta noite”, disse ele, apontando para o tricô dela. […]

“Não”, disse ela, estendendo a meia sobre os joelhos, “não a acabarei”.

E depois o quê? Pois sentia que ele ainda estava olhando para ela, mas que seu olhar tinha mudado. Ele queria alguma coisa – queria a coisa que ela sempre achava difícil lhe dar; queria que ela lhe dissesse que o amava. E isso, não, ela não podia fazer. Falar era muito mais fácil para ele do que para ela. Ele conseguia dizer coisas – ela, nunca. Asim, naturalmente, era sempre ele que dizia as coisas e, então, por alguma razão, de repente ele se incomodava com isso e a reprovava. Uma mulher sem coração, dizia dela; nunca lhe dizia que o amava. Mas não era isso – não era isso. Ela simplesmente nunca conseguia dizer o que sentia. Não havia uma migalha no seu casaco? Nada que ela pudesse fazer por ele? Levantando-se, ficou junto à janela, com as meias marrom-avermelhadas nas mãos, um pouco para se afastar dele, um pouco porque agora não se importava de olhar, com ele a observá-la, para o Farol. Mas ela sabia que ele tinha virado a cabeça quando ela se virara; ele a estava observando. Sabia que ele estava pensando: Você está mais bonita do que nunca. E sentia-se, ela própria, muito bonita. Você não me dirá, ao menos uma vez, que me ama? Ele estava pensando nisso, pois estava animado […] e porque era o fim do dia, e por terem discutido sobre a ida ao Farol. Mas ela não conseguia fazê-lo; ela não conseguia dizê-lo. Então, sabendo que ele a estava observando, em vez de dizer alguma coisa, ela se voltou, segurando a meia, e olhou para ele. E enquanto olhava para ele, ela começou a sorrir, pois embora não tivesse dito uma palavra, ele naturalmente sabia que ela o amava. Ele não podia negá-lo. E sorrindo, ela olhou pela janela e disse (pesando, para si: Nada sobre a terra se compara com esta felicidade)…

“Sim, você está certo. Vai estar chuvoso amanhã.” Ela não o dissera, mas ele o sabia. E olhou para ele, sorrindo. Pois ela tinha triunfado mais uma vez.

WOOLF, Virginia. Ao farol. Tradução e notas: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 108.

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– Você não vai terminar essa meia hoje à noite – disse apontando a meia. […]

– Não – disse ela, estendendo a meia sobre o joelho –, não vou terminar.

E agora? Pois ela sentiu que ele ainda a olhava, mas que seu olhar havia mudado. Ele queria alguma coisa – queria a coisa que ela sempre achava muito difícil de dar; queria que lhe dissesse que o amava. E isso, não, não podia fazer. Para ele, falar era muito mais fácil do que para ela. Ele conseguia dizer coisas – ela nunca. Assim naturalmente era sempre ele que dizia as coisas, e então por alguma razão ficava irritado de repente e a censurava. Chamava-a de mulher insensível; nunca lhe dizia que o amava. Mas não era assim – não era assim. Era só que ela nunca conseguia dizer o que sentia. O casaco dele não estava com farelos? Não havia nada que ela pudesse fazer por ele? Levantando-se, ficou à janela com a meia marrom avermelhada na mão, em parte para se afastar dele, em parte porque não se importava em olhar agora, estando ele a observar, o Farol. Pois ela sabia que ele virara a cabeça quando ela se virou; ele estava a observá-la. Ela sabia o que ele estava pensando. Está mais bonita do que nunca. E ela mesma se sentiu muito bonita. Não vai me dizer pelo menos uma vez que me ama? Ele estava pensando nisso […] por ser o final do dia e por terem brigado por causa da ida até o Farol. Mas ela não conseguia fazê-lo; não conseguia dizê-lo. Então, sabendo que ele a observava, em vez de dizer alguma coisa, virou-se segurando a meia e o olhou. E enquanto o olhava começou a sorrir, pois mesmo não tendo dito uma palavra ele sabia, claro que sabia, que ela o amava. Ele não podia negá-lo. E sorrindo ela olhou pela janela e disse (pensando consigo mesma, Nada na terra é capaz de se igualar a esta felicidade):

“Sim, você tinha razão. Amanhã vai chover.” Ela não disse isso, mas ele sabia. E o olhou sorrindo. Pois ela triunfara outra vez.

WOOLF, Virginia. Ao farol. Tradução: Denise Bottmann. Porto Alegre (RS): L&PM, 2013. p. 124-125.

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Virginia Woolf, em 1935, aos 53 anos,
oito anos após a publicação de Ao farol
(Foto de Man Ray)

Um relato pessoal sobre a polícia pacificadora do Pavão Pavãozinho

Primeira foto: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo mostram para policiais militares um homem ferido, talvez morto, estendido sobre o chão.

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Segunda e terceira fotos: moradores do morro Pavão Pavãozinho ou do morro Cantagalo carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto. Seu rosto, seu peito, sua barriga, seus braços, suas pernas estão ensaguentados.

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Quarta foto: policiais militares carregam o homem ferido ou o corpo do homem morto.

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O local é a ladeira Saint-Romain, no ponto de seu entrecruzamento com a rua Sá Ferreira, em Copacabana. A data, 22 de abril de 2014, noite do protesto dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo contra o assassinato de Douglas Rafael da Silva Pereira, o dançarino DG. O corpo ensaguentado de DG foi encontrado em uma creche do Pavão Pavãozinho. Ele morreu devido a uma hemorragia interna decorrente de uma laceração pulmonar provocada por um objeto – uma bala? – que perfurou seu tórax. Seu corpo apresentava sinais de espancamento, de acordo com sua mãe. O homem ferido ou morto que aparece nas fotos era Edilson da Silva dos Santos, que chegou morto ao Hospital Miguel Couto, devido a um ferimento de bala na cabeça. Ele foi baleado durante o protesto.

Mudei-me para a cidade do Rio de Janeiro, ondo resido atualmente, há um ano. Inicialmente, morei em Copacabana, na rua Sá Ferreira. Todas as noites, há policiais militares a postos no ponto onde essa rua e a ladeira Saint-Romain se interceptam. Policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Diariamente, eu passava pelo entrecruzamento da rua Sá Ferreira e da ladeira Saint-Romain ou ao lado, andando pelo lado oposto da rua.

Em uma noite de junho de 2013, após voltar do trabalho, saí de casa para comprar pão em um dos supermercados próximos. Ao atravessar a ladeira Saint-Romain, vi um rapaz que a descia ser abordado pelos policiais de plantão. Aparentemente, ele, que trajava bermuda, camiseta e chinelos, cometera o gesto suspeito de tão-somente descer a ladeira. Preocupado com sua segurança, parei e decidi acompanhar a abordagem. O rapaz tinha sido obrigado a se posicionar contra um muro e estava prestes a sofrer um baculejo. Um dos policiais – que era negro, como a maioria dos moradores do morro Pavão Pavãozinho e do morro Cantagalo – percebeu minha presença e me chamou. Fui a seu encontro. Como o rapaz, eu também fui obrigado a me posicionar contra o muro e também sofri um baculejo. Em seguida, o policial que me abordara perguntou-me, em tom arrogante e irascível, se eu conhecia o rapaz e se estava com ele. Ele sabia que não. Em face de minhas respostas negativas a ambas as perguntas, o policial iniciou uma sessão de intimidação: se eu não conhecia o rapaz, se não estávamos juntos, por que eu estava olhando? Assustado, tentei manter a calma e argumentar que toda pessoa tem o direito de acompanhar uma ação policial. Minha resposta o irritou ainda mais. Ele negou que eu tivesse esse direito, perguntou-me se eu estava olhando para julgar a ele e a seu colega e afirmou que ninguém se prontificava a ajudá-los, mas todos queriam julgá-los. (Naqueles dias, os policiais, sobretudo os da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, deparavam-se, no decurso das jornadas de junho, com uma resistência popular inédita a suas ações arbitrárias e violentas, sentindo-se acuados.) A partir desse momento, mantive-me calado, pois percebi que não havia nenhuma possibilidade de um diálogo razoável com aquele policial que me negava o direito de acompanhar a atuação de dois servidores públicos (militares) em um espaço público.

O rapaz foi liberado. Eu fui liberado.

Sou um homem branco, de classe média, que morava em Copacabana – e fui tratado dessa forma por policiais da PMERJ, por ter cometido o crime de acompanhar uma abordagem policial. Quantas vezes DG e Edilson, assassinados provavelmente por policiais militares, não sofreram, antes de morrerem, um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais? DG e Edilson eram negros e favelados. Quantas vezes seus parentes, seus amigos, seus vizinhos não sofreram um tratamento similar ou pior ou muito pior, perpetrado por policiais?

O Pavão Pavãozinho e o Cantagalo são favelas classificadas como pacificadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, como uma comunidade pode ser considerada pacificada se está sob ocupação militar? Que gênero de paz é esse que apenas pode ser garantido pela intervenção contínua e ininterrupta de uma força militar policial – a qual, supostamente, deveria proteger os moradores da comunidade, mas os trata a todos como suspeitos, criminosos em potencial?

O que aconteceu comigo naquela noite evidencia um dos problemas estruturais das polícias brasileiras, não apenas da polícia militar: o fato de que os policiais – os quais, pois é sempre importante reiterar, são, todos eles, servidores públicos – se consideram acima das leis e da justiça. No Brasil, as polícias não estão a serviço da população, não existem e não atuam com a finalidade de servir a população, mas com o objetivo de assegurar a conservação da ordem pública. Para garantir a manutenção dessa ordem pública, os policiais – orientados por representações e valores racistas e classistas, ou seja, orientados, portanto, por um imaginário e uma moralidade estruturados contrariamente à dignidade humana, à democracia e aos direitos – reputam-se autorizados a utilizar todos os meios violentos disponíveis, seja contra os indivíduos que corporificam signos das representações dos personagens perigosos e essencialmente ameaçadores à ordem, seja contra os indivíduos que, embora não corporifiquem signos das representações de personagens perigosos, terminam, em decorrência de suas ações, por se revelar, da perspectiva policial, como ameaçadores à ordem. O rapaz que eu vi descer a ladeira Saint-Romain e ser revistado pelos policiais militares pacificadores era perigoso porque corporifica o personagem do favelado, constituindo uma ameaça essencial à ordem. Eu fui considerado perigoso porque cometi o crime de acompanhar uma ação policial. Meu ato de testemunhar era ameaçador porque consistia em uma tentativa de questionamento da legitimidade da revista policial em curso, a qual era obviamente arbitrária. Na medida em que as polícias não se orientam pelas leis e pela justiça, mas pelos imperativos do seu imaginário e da sua moralidade particulares, representam a ordem que devem preservar não como pública, comum a todos, mas como um objeto do qual são as proprietárias, o que autoriza os policiais a interpretarem qualquer ameaça a sua propriedade privada como uma ameaça a eles mesmos e às instituições às quais pertencem. Uma ameaça – imaginária ou real – à ordem é uma ameaça às polícias. Uma ameaça – imaginária ou real – às polícias é uma ameaça à ordem.

O que aconteceu comigo naquela noite foi horrível. Voltei para casa transtornado, sentindo-me agredido e impotente. Entretanto, foi somente um susto, nada mais, em comparação com as violências policiais que, todos os dias, vitimam os moradores do Pavão Pavãozinho e do Cantagalo, bem como toda a população negra ou pobre ou moradora de rua do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil.

“A mulher arrastada” – corpos violentáveis e a naturalização da violência policial

Não estamos todos perplexos com a morte de Cláudia Silva Ferreira – mulher, negra, pobre, casada, mãe de quatro filhos, moradora do Morro da Congonha, em Madureira, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Hospital Naval Marcílio Dias e era responsável pela criação de quatro sobrinhos.

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Claudia Silva Ferreira 01

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Para a mídia corporativa, Cláudia Silva Ferreira não é uma mulher que foi assassinada, barbaramente assassinada, por policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, mas a mulher arrastada por policiais militares. Nos últimos dias, a retórica eufemística do jornalismo brasileiro, deliberadamente orientada a evitar todo estímulo à indignação coletiva contra a injusta ordem pública de cuja preservação a polícia militar é uma das principais responsáveis, atingiu o paroxismo. O significante ‘arrastado’ foi empregado não apenas como um adjetivo, mas também como um substantivo, como, por exemplo, em três manchetes do portal de notícias G1, das Organizações Globo: “Moradores fecham via após enterro de arrastada por carro da PM no Rio”, “‘Meu pai não vai conseguir cuidar de todos’, diz filho de arrastada por PMs”, “Arrastada por carro da PM do Rio foi morta por tiro, diz atestado de óbito”.

Muito provavelmente, o assassinato de Cláudia Silva Ferreira não teria sido noticiado ou teria sido noticiado sem destaques, como uma das muitas mortes que, todos os dias, ocorrem em confrontos com policiais militares nas cidades brasileiras, caso ela não tivesse sido arrastada por uma viatura policial. Seria reportado, se fosse, exclusivamente como um efeito colateral ou um excesso policial ou um erro. Uma baixa inocente e lamentável, mas inevitável, na guerra necessária contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Todos sabemos, a guerra é a única forma possível de se enfrentar o crime organizado e o tráfico de drogas. Não que a morte de Cláudia não esteja sendo noticiada dessa maneira, como um não-homicídio. Está. Afinal, na maioria das reportagens, ela não é a mulher assassinada ou, ao menos, a mulher morta por policiais militares, mas “A mulher arrastada” ou, tão-somente, “A arrastada”. O vídeo de Cláudia Silva Ferreira sendo arrastada por cerca de 350 metros, ao ser transportada a um hospital na caçamba de uma viatura da PMERJ, atraiu a atenção da mídia corporativa, convertendo seu assassinato em notícia, mas possibilitou também, convenientemente, que a comoção coletiva pudesse ser desviada do fato de ela ter sido assassinada para o fato de ter sido arrastada por policiais militares. Decerto, o arratamento de um indivíduo, em si, corporifica um ato bárbaro, consistindo em um fato demasiado grave. O problema é que Cláudia Silva Ferreira não foi apenas arrastada por policiais militares, mas também assassinada por policiais militares. Contudo, a mídia corporativa e o poder público têm silenciado o segundo fato.

Em face de atos de violência policial como o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, os arautos do bom senso exortam-nos a sermos cautelosos, alertando-nos para o perigo de não separarmos o joio do trigo, para o risco de jogarmos fora a criança com a água do banho: há bons policiais, não podemos esquecer.

A polícia militar brasileira é uma instituição que exige de seus membros a incorporação total de seu imaginário, de sua moralidade e de seu código de conduta. Os soldados devem incorporar as representações, os valores e os hábitos da instituição, sem jamais duvidar de sua necessidade e justeza, sem nunca questioná-los, mesmo se não estiverem inscritos em nenhuma lei do ordenamento jurídico. Os pontos situados fora da curva não são, para utilizar o vocabulário pessoalista que reduz problemas sociais a desvios de caráter, os maus policiais, mas os bons policiais. A estrutura da polícia militar está estruturada para produzir a figura do policial agressivo e que sistematicamente desrespeita os direitos. A polícia militar não é uma instituição que apresenta problemas, mas constitui, por si mesma, devido a sua estrutura, um problema social. Os três policiais militares que assassinaram Claudia Silva Ferreira, dois subtenentes e um sargento, estão envolvidos em sessenta e dois autos de resistência ou resistências seguidas de mortes, sendo responsáveis por sessenta e nove mortes. Somente um dos subtenentes está envolvido em cinquenta e sete autos de resistência, tendo assassinado sessenta e três pessoas!

A violência policial, que na sociedade brasileira adquiriu a dimensão de um hábito, passando a ser naturalizada e tacitamente justificada, motivo pelo qual não nos surpreende e não nos indigna, dirige-se, antes de tudo, contra os corpos que nossa cultura significa como passíveis de ser violentados: corpos índios, corpos negros, corpos pobres ou miseráveis, corpos femininos cisgêneros, corpos transgêneros, corpos não-heterossexuais. Não obstante, não são esses os únicos corpos que podem ser violentados pela polícia militar. Repete-se que, nas áreas nobres das cidades, os policiais militares não agem da mesma forma pela qual se conduzem nas favelas e nas periferias. Todavia, há dois equívocos nessa verdade autoevidente. (1) Aos corpos classificados pela cultura como passíveis de ser violentados está sempre sancionado dispensar uma atuação violenta, não importa o local onde estejam posicionados. (2) Embora a cultura opere uma clivagem entre corpos violentáveis e corpos não-violentáveis, a qual é reconhecida e seguida pela polícia militar, esta opera uma segunda clivagem, entre indivíduos ameaçadores à ordem e indivíduos não-ameaçadores. Em uma situação de conflito entre as duas clivagens, prevalece a segunda. Os corpos classificados como violentáveis compreendem justamente os indivíduos representados como ameaças naturais à ordem. Contudo, um indivíduo cujo corpo em princípio seja não-violentável pode tornar-se, ou melhor, pode terminar revelando-se um indivíduo ameaçador à ordem. Todo indivíduo que constitua uma ameaça à ordem pode ter seu corpo violentado, ainda que seu corpo não fosse classificado, anteriormente, como um corpo violentável.

Quem define quem são os indivíduos ameaçadores à ordem? A própria polícia militar. Essa foi a lição que parcela da população brasileira, branca e de classe média, aprendeu durante as revoltas de junho de 2013. Reitero o que escrevinhei à época. “As representações, os valores e os hábitos da polícia [militar] são representações, valores e hábitos militares, constitutivos de uma instituição cuja finalidade é a guerra. Virtualmente, o inimigo contra o qual a polícia deve guerrear e contra o qual se encontra em estado de guerra permanente não é apenas uma parcela da população, aquela que configuraria uma ameaça – imaginária ou real – à ordem, mas toda a sociedade”, na medida em que todo indivíduo pode terminar revelando-se uma ameaça à ordem, sendo reduzido a um corpo violentável. No decurso das revoltas do ano passado no Rio de Janeiro, um hospital público e uma organização não-governamental de assistência a crianças e adolescentes carentes soropositivos foram considerados locais que abrigavam indivíduos ameaçadores à ordem, sendo atacados com bombas de gás lacrimogêneo.

Lamentavelmente, talvez somente consigamos extinguir a polícia militar se e quando a parcela da população cujos corpos são, em princípio, não-violentáveis tornar-se, da perspectiva dos policiais militares, uma ameaça à ordem e objeto sistemático da violência institucionalizada.

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Claudia Silva Ferreira 02

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Vai ter Copa – mas não vai ter Copa!

Evidentemente, vai ter Copa! De um jeito ou de outro, vai ter Copa! Sim, vai! Infelizmente!

Nós, que dizemos ou escrevemos “Não vai ter Copa”, não somos imbecis! Imbecil é quem interpreta apenas literalmente o significado de um enunciado. Nós sabemos que, infelizmente, vai ter Copa.

Obviamente, preferiríamos que fosse não ter Copa, mas sabemos que, sim, vai ter Copa. Infelizmente!

Como manifestação de discordância, “Não vai ter Copa” identifica uma tomada de posição, a delimitação de um espaço político outro, um lugar ex-cêntrico, marginal ao espaço nacionalista e desenvolvimentista construído pelos governos do PT e seus aliados partidários, pela FIFA, pela CBF, pelas empreiteiras, pela mídia corporativa, pelos patrocinadores oficiais.

Dizer ou escrever “Não vai ter Copa” significa posicionar-se contrariamente aos recursos públicos investidos em empreendimentos privados, às obras megalomaníacas e hiperfaturadas, às remoções e às, quando existentes, indenizações miseráveis; significa posicionar-se pela distribuição de renda, pelo direito à moradia e à cidade, pelo direito ao lazer e ao esporte, pela direito à educação e à saúde, pelo direito ao saneamento básico, pelo direito ao transporte, pelo direito à livre manifestação do pensamento e pelo direito de reunião, pela desmilitarização da polícia de segurança pública.

Nós temos o direito de discordar, de sermos dissidentes. Temos o direito de sermos contrários à Copa. Temos o direito de sermos antinacionalistas. Temos, inclusive, o direito de torcermos contra a Seleção Brasileira de Futebol. Temos o direito de resistir, inclusive violentamente, às arbitrariedades e violações promovidas pelo Estado. Vocês não têm o direito de nos retirar esses direitos!

Sim, vai ter Copa – mas continuaremos dizendo ou escrevendo “Não vai ter Copa”!

Vocês que, por desinformação ou desonestidade, defendem a Copa, vocês são cúmplices, ou melhor, promotores ativos de todas as irregularidades e barbáries que estão sendo perpetradas para a realização da Copa, bem como das muitas que ainda serão perpetradas. A Copa é de vocês! De vocês, que querem a Copa, que dizem ou escrevem: “Vai ter Copa”. Portanto, assumam suas responsabilidades! Assumam todas as irregularidades e barbáreis que estão provendo! Querem a Copa? Tudo bem! Vocês têm o direito de querer a Copa. Contudo, vocês não podem ter apenas uma parcela da Copa, aquela parcela que consideram bela e prazerosa. Se querem a Copa, devem tomar para si a Copa em todas as suas dimensões. A copa é de vocês – tanto a Copa do espetáculo, como a Copa das irregularidades e barbáries.

Nós não queremos nem uma nem outra Copa, porque sabemos que o espetáculo é indissociável das irregularidades e das barbáries. Recusamos o nacionalismo desenvolvimentista, o ufanismo alienante, explorador e excludente.

Vai ter Copa, mas para vocês. Para nós, não vai ter Copa, porque decidimos, conscienciosamente, não promover o circo de horrores e não aplaudir suas atrações.

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Bola da Copa do Mundo da FIFA de 2014

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“Traveco” não é xingamento, Gregorio Duvivier?

Acerca das discussões suscitadas pelo texto “Xingamento”, de Gregorio Duvivier, publicado na Folha de S.Paulo, em 6 de janeiro, registro algumas reflexões.

A identidade do enunciador não desautoriza o conteúdo do seu enunciado. Em princípio, o que deve importar em um debate são os argumentos, a forma de argumentação e a agenda. Todavia, a posição do enunciador ou pode lhe conferir experiência ou conhecimento em relação a um tema ou pode lhe destituir de experiência ou conhecimento, isto é, pode ou lhe conferir ou lhe destituir de autoridade enunciativa. A existência de autoridade enunciativa fundada na experiência ou no conhecimento não impede à crítica a um enunciado. A ausência de conhecimento ou de experiência, por parte do enunciador, tampouco torna um enunciado necessariamente inválido. Na atividade de interpretação, o receptor deve tentar identificar, com base em informações do enunciado em foco ou de outros enunciados relacionados, a presença ou a ausência de conhecimento ou de experiência, bem como a agenda do enunciador. O que é enunciado? De que forma é enunciado? Quem enuncia? De onde enuncia? Para quem enuncia?

Gregorio Duvivier não é uma mulher (cisgênera ou transgênera). Por não ser uma mulher ele não está autorizado a discutir temas como identidade feminina, sexismo, dominação masculina ou feminismo? Um debate público, qualquer debate público, é, por natureza, um debate aberto a todos. Identidade feminina, sexismo, dominação masculina e feminismo são temas públicos de debate. Em um debate público, não é possível, na prática, impedir que determinados sujeitos participem, tampouco é possível obrigar alguém a participar. No entanto, ainda que fosse possível, toda tentativa de definir previamente os sujeitos capacitados a participar de um debate público consistiria em uma modalidade de interdição, de censura. Ademais, quem se dispõe a participar de um debate deve estar preparado para receber possíveis manifestações de discordância e críticas a seus enunciados, as quais podem ser emitidas por qualquer um dos demais participantes. (Evidentemente, ofensas não são manifestações legítimas de discordância e crítica.) Um homem não está desautorizado a discutir temas como identidade feminina, sexismo, dominação masculina ou feminismo pelo fato de ser homem (cisgênero ou transgênero). Toda tentativa prévia de desautorização com base na identidade do enunciador é interdição, censura. O que importa são os argumentos e a forma de argumentação do enunciado, os quais podem, na atividade de interpretação, ser relacionados à posição de enunciação, à experiência, ao conhecimento e à agenda do enunciador. É possível também, às vezes necessário, estabelecer relações entre enunciados, como entre enunciados de um mesmo enunciador.

O conteúdo do texto “Xingamento”, de Gregorio Duvivier, é sexista? Efetivamente, não. Contudo, estou convencido de que o fato de Duvivier ser um homem cisgênero, bem como branco, pertencente à classe alta e famoso, lhe confere uma posição de autoridade enunciativa privilegiada, uma autoridade que não possuem as mulheres (cisgêneras ou transgêneras) quando discorrem sobre as mesmas questões que ele discutiu nesse texto. Para que não haja desentendimentos: a constatação de que Duvivier, por ser um homem cisgênero, está em uma posição de autoridade enunciativa privilegiada não é uma crítica ao texto “Xingamento”, é a constatação de um fato. O primeiro problema não está no texto, portanto – o que não significa que o texto não possa ter problemas. O primeiro problema está nas nossas formas de recepção aos enunciados, que se alteram de acordo com as identidades do enunciador. O problema é que, se o enunciado de Duvivier tivesse sido proferido por uma mulher (cisgênera ou transgênera), muito provavelmente estaria sendo desautorizado com base na identidade feminina de sua enunciadora. Homens e mulheres ocupam espaços assimétricos de enunciação, possuem autoridades enunciativas desiguais. As vozes das mulheres são subalternas às vozes dos homens e as vozes das mulheres transgêneras são subalternas às vozes das mulheres cisgêneras. Um homem, ainda que não possua uma experiência identitária feminina – situação dos homens transgêneros, que foram socializados como mulheres –, ainda que não tenha adquirido nenhum conhecimento sobre identidade feminina, sexismo, dominação masculina e feminismo, é sempre mais autorizado do que uma mulher a discorrer acerca de temas como identidade feminina, sexismo, dominação masculina e feminismo. Três conclusões. (1) O fato de Duvivier ser um comediante famoso, escrevendo para um jornal de circulação nacional reputado como sério e confiável, certamente contribuiu para que seu enunciado recebesse mais atenção e aprovação do que recebem diariamente enunciados de conteúdo semelhante ou idêntico vocalizados por mulheres, feministas ou não-feministas. (2) O fato de Duvivier ser um homem certamente contribuiu para que seu enunciado não recebesse críticas que teria recebido, se tivesse sido enunciado por uma mulher, feminista ou não-feminista. (3) Apropriando o argumento do próprio texto “Xingamento”, podemos também concluir que Duvivier não foi vítima do mesmo número de ofensas que uma mulher teria recebido, caso fosse a enunciadora.

Considero importante que homens participem dos debates sobre identidade feminina, sexismo, dominação masculina e feminismo, denunciando e condenando todas as formas de discriminação, opressão e exclusão praticadas contra as mulheres cisgêneras e transgêneras. Todavia, um homem que se disponha a participar de debates feministas e a defender os direitos das mulheres deve estar consciente de que ele não é e jamais será um sujeito do feminismo. O sujeito do feminismo são as mulheres. Como todo sujeito de movimentos sociais, o sujeito do feminismo é problemático. Quem são as mulheres? O que é uma mulher? Quem é mulher? Não existe uma identidade feminina homogênea e estável, fundada na natureza biológica, transcultural e transtemporal. No entanto, conquanto o sujeito do feminismo possa ser problemático, é evidente que os homens não são seu sujeito. Portanto, um homem que participe de debates feministas e defenda os direitos das mulheres precisa adotar uma posição de abertura em relação ao outro, estando sempre disposto, antes de tudo, a ouvir as mulheres. Não está obrigado a concordar, pois ninguém está obrigado a concordar com nada, mas deve, ao menos, estar disposto a ouvir, sempre.

Retornemos a “Xingamento”.

Um problema do texto, embora pudesse não ser uma intenção do seu autor, é o fato de que pode conduzir a uma conclusão equivocada, segundo a qual o sexismo e a dominação masculina são apenas um problema de linguagem. É necessário criticar nossa linguagem, a qual, sexista, estrutura nossas formas de pensamento. Contudo, não é suficiente. O sexismo e a dominação masculina não são problemas a serem enfrentados tão-somente na esfera lingüística. Esse é o equívoco da correção política, a qual pressupõe que, ao transformarmos a linguagem, transformaremos, consequentemente, todo o mundo social. Ou melhor, um não-equívoco, porque o projeto da correção política é uma transformação alienante e conservadora da linguagem, que provoque a falsa impressão de que a transformação da linguagem promoveu uma efetiva transformação do mundo social.

Aproximemos “Xingamento” de outros enunciados. Gregório Duvivier é integrante da Porta dos Fundos, uma produtora de sucesso de filmes humorísticos de curta-metragem, criada em agosto de 2012. Pelo menos três filmes da Porta dos Fundos, Traveco da firma, Casal normal e Adão, foram condenados como transfóbicos por ativistas glbt’s, particularmente por ativistas de identidade transgênera. Dos três vídeos, vi o primeiro e o segundo. Conquanto considere que tenha realizado filmes interessantes, engraçados ou críticos, com o decorrer do tempo perdi interesse pela Porta dos Fundos, devido ao fato de continuar realizando obras que reproduzem representações discriminatórias e ofensivas a grupos minoritários, como homens e mulheres transgêneros – motivo pelo qual não vi o vídeo Adão. Meu desinteresse decorreu também de, salvo engano, nenhum dos membros da produtora jamais ter se pronunciado publicamente em relação às críticas. Os integrantes da Porta dos Fundos podem não reagir agressivamente às críticas a seus trabalhos, como Rafael Bastos e Danilo Gentili – uma postura que decerto merece ser reconhecida, neste tempos. Todavia, o silêncio também é uma forma de posicionamento. Ainda que não estivesse diretamente envolvido na produção de nenhum dos três filmes denunciados como transfóbicos, a circunstância de Duvivier ser membro da produtora seria suficiente para não isentá-lo de algum grau de responsabilidade. No entanto, não é caso. Ele e Ian SBF são os roteiristas do vídeo Traveco da firma. Entrevistado em uma reportagem do jornal O Dia“Livro ‘Porta dos Fundos’ reúne 37 roteiros dos esquetes da web” –, ele assim explicou sua inspiração para a criação do filme e justificou sua ‘relevância’: “Toda vez que eu me deparo com um [sic] travesti se prostituindo, me pergunto se não é algum amigo passando dificuldades. Este vídeo está aí para lembrar que todos nós estamos muito próximos de rodar a bolsinha”.

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